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eliseu vicente

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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 2 de junho de 2010

DOS ABUSOS PARLAPATÓRIOS AO PRIMOR DE ACHAR ECO E ORELHAS AFINS

Deixou dito, não escrito, que quando chegasse a hora dele gostaria de ser sepultado, em campa rasa, no cemitério da aldeia onde nascera, lá nas fraldas nordestinas de tão descoroçoadoras memórias, nesse país de insuficiências congénitas de onde se sentiu varrido, ou seja apenas a uns dois mil quilómetros do local na estranja onde fez manifesto de tal querença. E a hora dele chegou, meses depois, em simultâneo com a hora de obrigar os familiares a fazer contas, ainda que também lhes tivesse deixado uma sacola de pano, das antigas, a abarrotar de notas e moedas, a fim de cobrir as despesas do próprio enterro. Mas há que ter em devida conta a sequência das prioridades, e a compra de carro novo, de maior potência e correspondente estatuto, impunha-se-lhes como de premência ímpar, corroborada pela proximidade das férias e logo pela negação da vergonha de tornarem à terra na mesma lata do ano anterior, um exemplar de todo desactualizado e cheio de mazelas e ferrugem. No tocante ao funeral prometido, com obrigatoriedade de transladação do corpo segundo os preceitos oficiais, de sobremaneira tentariam desencantar algum processo de atenuar ou evitar mesmo a despesa e a ronceirice das burocracias, começando por não despertar a atenção com o alarido da choraminguice e não caindo nas garras de qualquer agência funerária — cambada de ladrões trajados de preto e de olhos em banho-maria a tempo inteiro. Mas como?
Uns, rosnam que foi o genro o autor da ideia. Outros, que só podia ter sido a própria filha. Fosse de quem fosse o alvitre, assinale-se que não foi senão uma espécie de devolução do seu a seu dono, se se atender à evidência de que fora o velho a pagar o carro novo, sendo portanto de inteira justiça ser também ele a estreá-lo. Vestiram-lhe o melhor fato, uma camisa de seda a sério, a mais rutilante gravata, calçaram-lhe os melhores sapatos, e até um belo chapéu de feltro com a aba a descair sobre os olhos que se conservavam abertos, se bem que fixos, como se deslumbrados com a eternidade atingida. E depois foi só instalá-lo no banco traseiro, equilibrá-lo com almofadas e uma manta a protegê-lo do frio, e partir para férias antecipadas no novo automóvel comprado naquele mesmo dia, mal amanhecera. Com sorte, tenacidade e muitos cafés a escorar as pálpebras, em dois dias completos fariam a viagem até às ditas fraldas nordestinas de apoucada memória. Eis a beleza de observar uma família ditosa — marido e esposa, nos bancos da frente, e o pai dela e sogro dele, viúvo, sentado atrás — no início do percurso que a levará, a família, em gozo de merecidas férias.
Ainda a vastidão teutónica os envolvia, começaram os problemas: um inopinado nevão fez confundir as estradas com as bermas, cerceando sem hipóteses quaisquer veleidades de progressão. Quantas foram as horas de espera e de rancor contra ninguém e toda a gente, enquanto as lagartas dos limpa-neve, algures na impenetrabilidade do nevoeiro a rematar a danação, lhes matraqueavam os tímpanos? Entretanto, lá de trás, sem um murmúrio, o passageiro de honra começou a fazer-se ouvir e cada vez mais alto. Pelo nariz. E naquelas feições de expressão hermética, que o chapéu detectivesco carregava de mistério, quase se tornava perceptível um sorriso de escárnio acusador.
Ultrapassada a primeira fronteira com meio dia perdido, seria de crer que agora, rodeados por gauleses e bretões e outros, tornariam a parar, e para descansar uns minutos, após a fronteira oposta, perante a ardência das searas ou a imponência de olivais e vinhedos em plena meseta ibérica. Mas não, nada disso: contornando pelas vias externas os imbatíveis engarrafamentos na cidade-luz, a capital das capitais de todo o mundo, logo foram cair mesmo no meio de uma manifestação de camionistas a avançar em marcha lenta. Azar dos azares, seja qual for a capital e respectivos engarrafamentos a contornar. E lá atrás, de olhos espetados, apesar da aba, na aflição dos acompanhantes, e com a nitidez da boca a entreabrir-se em reforço do sarcasmo sorridente e acusatório, o deão por selecção espontânea avolumava a voz para que os demais, sempre e só pelo nariz, dele escutassem as razões.
Quando, não se imagina quanto tempo depois, lograram prosseguir o andamento orientado a poente, nem as janelas do carro escancaradas lhes permitiam respirar, tal o discurso proferido no púlpito posterior pelo patriarca em jornada gloriosa de regresso a casa. E ainda faltava vencer a massa bruta do maciço pirenaico. Ou não. Foram eles por ali acima, em busca de um miradouro de convincente panorâmica e sem demasiada afluência por ora, e lá fizeram sentar num banco de pedra, embevecido pela sumptuosidade da paisagem, o venerando decano e pregador ambulante. E lá o deixaram a sós, aos urros, talvez a ensaiar a escala das cordas graves na ressonância das fragas.
Que através das ventas o ouvisse quem por ali, assim, tão bem vestido e calçado, enchapelado e sorridente, desse com ele.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

DAS DIATRIBES QUE O CREPÚSCULO INSINUA À ACEITAÇÃO CONIVENTE

O frio, quando já adiante da quadra dita normal para que a tolerância lhe perdoe os aleijões do cieiro, tem-se mantido merecedor e ufano de quantos epítetos remordidos se lhe apliquem. Chega a ser de arrepios e bater de dentes, apesar do sol lisonjeiro lá nas alturas, a aragem que desde a amplidão do descampado continental vem chegando. Afinal a mesma que ao crepuscular o dia, sem pejo, há-de auspiciar a noite em tonalidade menor de bordões bem demarcados.
Entreabriu a janela e concluiu que estava frio de mais para se ter uma janela aberta. Portanto, tratou de a fechar. Ao fazê-lo, porém, reparou que saía de casa a nova vizinha do edifício em frente, no outro lado da rua, e de imediato verificou que nem estava assim tanto frio. Resolveu mesmo escancará-la e valer-se do conluio da cortina, desinquieta pelo arejo vespertino, para confrontar a visão real com a que a imaginação metediça nele teria inoculado e negaceado, desde há tantos dias como os que a lascívia reivindica a fim de se declarar guerra e avançar. “Um caso interessante”—, mediu nele, em voz alta, o agrimensor residente, ao fechar de vez, muito devagar, a janela. Pode ser que amanhã, quem sabe, se verifique a coincidência de abalar de casa à mesmíssima hora que a nova vizinha do edifício em frente.
O vento é macho, é bruto, não dá confiança a lisonjas interesseiras em que a mansidão seja mote ou referência. Nada o confunde com o trato dado ao sopro que mal se apreenda na copa domesticada do arvoredo das bermas. Isso nem é vento, é brisa, é fêmea em pose de assédio aos obséquios derramados pela sua corte em viagem. Escute-se-lhe o uivo e os saracoteios, ao vento a sério, consoante o que se lhe exponha sem convicção ou proveito. E aproveite-se o desarranjo do bater de portas e janelas durante a noite inteira, se mal apoiadas nas ombreiras, para pôr em dia a escrita mental das asneiras em perspectiva de emulsão a qualquer prazo. É que nem entreabrir a janela se recomenda, com um tempo destes, desenfreado e aos coices, quanto mais admitir sequer a coincidência de abalar de casa à mesmíssima hora que a nova vizinha do edifício em frente. Pode ser que amanhã, quem sabe, se verifique a melhoria das condições atmosféricas e se enxergue o ensejo de lançar ganchos sobre a amurada do arrojo ao consumar a abordagem.
No dia de hoje, o sol, que os espertos na matéria dos augúrios tinham anunciado, lá para a tarde, como franco e rijo, amanheceu taciturno e enroupado por nuvens de manifesta intransparência, levando a adiar quantos projectos e anseios dele dependessem para que a consecução de cada qual, unívoca ou a sugerir conluio de alguém, ganhasse corpo e logo fosse forma de evasão, recreio, construção. É um facto que nem sempre os palpites batem em conformidade, e de sobremaneira se em causa se colocar a opção entre o derrotismo de trazer o guarda-chuva na bagagem e a confiança de carregar qualquer guarda-sol, chapéu ou boné, a fim de dar descanso à moleirinha. E porque o acalento solar, a valer por outros, quem sabe, seria imprescindível aos propósitos lidos na tremulação dos olhos desde há duas semanas, pelo menos, aquelas roupagens nevoentas sobre a serra vinham uma vez mais alterar tudo o que tantas lucubrações levara a congeminar. É que já lá se aninham uns quinze dias sobre o dia em que pela primeira vez atentou na nova vizinha do edifício em frente ao sair de casa. E pena é que tanto frio o apoquentasse então como agora, para nem falar dos vendavais ou das cargas de água, que até da janela mal o deixam aproximar e espreitar a rua e quem nela passe. Pode ser que amanhã, quem sabe.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

ONDE O VÍCIO DE TER VÍCIOS SE DESCULPA E SEGUE ADIANTE DA SOMBRA

Deitou açúcar no café, meio pacote, e rodou a colher na chávena, em sentido retrógrado, tantas vezes quantos os anos que fazia hoje: trinta e nove. Para da oportuna dissolução do adoçante, de pouco ou nada lhe valeria — sempre de tal tivera consciência — rodar a colher contra a marcha dos ponteiros ou a favor. Fosse assim tão simples obstruir a arquitectura de rugas por fora e por dentro, e não sobraria sequer um grão de açúcar no mundo ao dispor dos afinal infiéis amantes do café despertador, retemperador, motriz. Porque os bons consumidores do elixir tropical não carecem da sobrecarga de veneno granulado. Nem em tempo algum se verão compelidos a enveredar por um sentido ou por outro na rotação da colher, seja qual for o grau de abstracção sob demanda no labirinto circunvagante da chávena. E trinta e nove anos nada serão ainda, quando comparados à condenação de quem já role sobre o dobro, ou mais uns tantos, e assim contabilize os dias um por e ao invés, por subtracção sem necessidade de prova. Haverá sempre quem se sinta muito pior que nós, ame ou não ame o refúgio pontual do café, com veneno ou sem.
Entretanto, também há notícias que envenenam, e com que afinco na picada sobre a carne tenra da crença, e aquela, ainda o sol ressonaria, impunha-se-lhe tão acutilante como se lhe afiançassem que a mulher o andava a enganar com o seu melhor amigo. Mas ele não era casado, amancebado, ou sequer carenciado de descargas ajustadas de quando em quando ao melhor preço. E de amigos, nem a poeira de quaisquer memórias disso lhe faria arder os olhos. Nunca fizera amigos ou com tamanha temeridade algum dia ele se preocupara de mais. O efeito da notícia, pois, apesar do carrego de maus desígnios na sua sublimação de remate, antecessora do escarro, veio a ser menos que nulo. Aliás, o dar ouvidos a aleivosias provenientes não se sabe de onde, se apenas votadas a desmantelar equilíbrios e a reduzir a pó atitudes da mais sã verticalidade por insígnia, será quase tão criminoso como produzi-las e fixar-lhes asas no lombo para que voem e cumpram o que à partida lhes cumpra: derrubar, destruir, varrer, soterrar. E apurar o propósito e a paternidade das infâmias transportadas pelas ventanias, mais que quimérico, é escusado: uma vez posto o ovo, nada há que o impeça de parir e de se multiplicar orelhas avante como toda a praga, ainda que de vida curta. O tempo tudo cauteriza.
O mais atilado há-de ser isto: tomar um café, sem açúcar, nem sequer a transigência de meio pacote, e fazer do amargor saboreado a doçura das ideias enfim aclaradas, libertas, orientadas segundo a bússola das desde sempre consideradas como rumo e prémio em vista.
Quanto ao mísero percalço dos trinta e nove anos acumulados, para o ano que aí está posto à espreita será pior: serão quarenta, o começo do fim, que o mesmo é dizer da queda no vácuo da imponderabilidade nos passos. O resto, queira-se ou não, não é mais que treta.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

DO AMOR A TRÊS DIMENSÕES À HECATOMBE POR DESCUIDO DOS ACTORES

A chover e com força, vê-se. E ele, desprevenido, sem gabardina nem guarda-chuva. Ela, equilibrista amadora em contorções do belíssimo par de pernas sobre saltos de palmo na calçada do passeio, abre com convicção um chapéu minúsculo, que mal cobre os quase dois contos e quinhentos agora mesmo deixados no cabeleireiro. Mas oferece-lhe cobertura até ao carro, ainda assim, se não estiver longe. E ele, logo a fazer contas pelos dedos mentais, sabia lá quem ela era, e se bem que fosse fácil antever uma molha até à medula nos cerca de cem metros a percorrer, aceita os préstimos. Acabaram por ir jantar à praia mais próxima, como se adivinhava, porque a vizinhança das ondas sempre ajuda no sufoco da mudez, e deitar-se num motel sem nome, de pouca luz, poucas perguntas e nenhum conforto, meio escondido na berma da estrada de regresso, entre o negrume dos pinhais em volta. Se ele tivesse tornado, à mesma hora do dia seguinte, ao mesmo ponto onde o temporal os fez encontrar e conhecer, talvez conseguisse a fortuna de a reencontrar, uma vez que o penteado desfeito pela balbúrdia da noitada teria necessitado de mais dois contos e quinhentos, ou mais, para recuperar o porte, a graça, a incisão atacante. Não teria sido, no entanto, o penteado, apesar de ludibrioso no ímpeto contra a sisudez ruinosa por mercê da indecisão, o maior dos argumentos esgrimidos na consecução da arremetida. Aquele belíssimo mas inseguro par de pernas, em inconvenientes oscilações pelo desequilíbrio com origem nos saltos de palmo sobre as felonias da calçada, esse sim, esse é que se instituiria como culpado de tudo o que depois aconteceu. E aquilo que aconteceu nem foi mais que o comezinho entre dois seres vivos e devotados à supressão radical das próprias carências, ainda que para isso até precisem de se esgadanhar, arrebatar, fingir ou inventar uma paixão resumida à desmemória antes e após, num qualquer motel de nenhum conforto, poucas perguntas e pouca luz, meio escondido nos pinhais em volta da estrada de regresso a casa.
Em casa de cada um deles, haverá quem os espere, impaciente, longe de pressupor sequer, por felicidade, a profundidade do mergulho por ambos perpetrado, entretanto. Na dele, até poderá estar um tão belo par de pernas como o que ele, autorizado, acabou de devassar, gozar, possuir. Na dela, talvez esteja um marido amante e amigo, confiante em quem a seu lado se deita, dorme e ressona desde há anos, sem que a tentação do fruto proibido algum dia o fizesse vacilar, desorientar e seguir no rasto de qualquer alternativa de vulto, estivesse a chover ou a derreter penedos e ânimo às ordens da estrela mais próxima. E em ambas as casas, como é comum acontecer, haverá crianças parecidas com quem as projectou, produziu, alimentou, vestiu, calçou, carregou de mimo e de vícios que agora se encarrega de desbastar.
Os chupões e mordidelas do frenesim no pescoço e nos ombros, dela nele e dele nela, é que arruinaram tudo. Nem o recurso a camisolões de gola alta ou cachecóis complicou a descoberta e as consequências previsíveis a qualquer distância de tiro.
Foram a enterrar no mesmo dia e no mesmo cemitério. Só a hora não coincidiu. Quando ela lá chegou, já ele lá estava instalado. E há quem pense que eles se encontram, hoje ainda, nas profundezas onde só os vermes preponderam, e dormem juntos. Terá sido por isso, aliás, que os cachecóis e os camisolões de gola alta foram com eles para a cova, não houvesse mais ferradelas e chupões a ocultar.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ENSAIO MÍNIMO DE FÁBULA SEM ESOPO NEM FEDRO OU LA FONTAINE POR DETRÁS

Vagaroso, muito vagaroso, o caracol alçou as antenas e aquilatou com elas o grau de humidade na atmosfera e no solo, antes de se arriscar a descer da folha de couve, saborosa mas distante da fresquidão que às escuras enganaria qualquer, onde tinha pernoitado. A temporada das temíveis geadas matinais, embora próxima, não está em cartaz, e urge aproveitar a preguiça dos pássaros a largar o ninho para, sem grande segurança, ainda assim, empreender a caminhada deslizante sobre ou por debaixo dos múltiplos estorvos de qualquer horta. A confirmar-se o que ele ontem captara por acaso na linguarice de dois grilos, haverá na estrema oposta, à beira do poço, uma nova plantação de alfaces de grande porte. A não ser que não passasse de cantiga, do grilo, a tentar a golpada decisiva sobre a fêmea em pauta, avessa a deixar-se enrolar ao primeiro assédio em serenatas. No entanto, desta vez, não. Elas, as alfaces, viçosas e vistosas, ali se enfileiram e aguardam quem as saiba mordiscar em lentos modos, esmoer com deleite até ao talo, e engolir, por fim, com os olhos revirados, em supremo êxtase.
Apesar de ser longa a distância a percorrer até à maravilha anunciada pela indiscrição de ouvir uma conversa entre namorados, sejam grilos ou gafanhotos ou toupeiras, tanto faz, o importante será que não falte a tenacidade e a atenção ao gastrópode, ou os predadores do costume atacarão mal surja a oportunidade, limitando-se a segui-lo através do inevitável rasto de ranho com que o chão atrás dele o trairá. É preciso ir depressa e enveredar por quantos atalhos recomendem a poupança de esforços na corrida, porque o nascer do dia não tarda muito e com ele é fatídico o calor, o pior dos flagelos infligidos a uma criatura cuja viscosidade, inata, é garantia de vida. Há lá coisa mais aprazível que a sombra proporcionada por legumes de largas folhas e verdura ímpar, tenra, da que só de ser contemplada e desejada se desfaz na boca sem lá estar ainda? E haverá maneira de mudar de horizontes mais segura que a que a escuridão da noite possibilita?
Na encosta do monte que emoldura o plaino onde a horta se inscreve, porque é de terra nua, esventrada por algum desabamento, e favorece o contraste, assentaram quartel de observação cinco ou mais corvos a grasnar ameaças gratuitas uns aos outros. Um deles alonga o pescoço e sacoleja as asas, como se estivesse a ver alguma coisa com interesse na campina em frente. Sendo um facto incontestável que o corvo tem olhar arguto, não parece, no caso em marcha, que o obscuro passarão lobrigue de tão longe o coitado do molusco condenado a trazer a casa às costas. Estará a pôr em mira um outro coitado qualquer, decerto, e a advertir os comparsas da eventualidade de pitéu para todos a breve espaço. E lá vai a comandita dos corvos em alvoroço famélico, voando por cima da horta sem olhar para baixo, onde se esconde a tremer um caracol votado a divagações com escuta de conversas namorisqueiras, o pior dos flagelos infligidos a uma criatura cuja mansuetude, inata, é garantia de vida. Há lá coisa mais apetecível que a paz proporcionada por legumes de largas folhas e verdura ímpar, tenra, da que só de ser contemplada e desejada se desfaz na boca sem lá estar ainda?
Para que tudo seja tomado em devida conta, falta ainda informar que ao lado da horta há uma estrada, e que essa estrada, mais ou menos a meio da área de cultivo, chega a entranhá-la, em curva apertada, para logo a abandonar de vez, roubando-lhe um bom quinhão de produtos virtuais a favor da nudez do alcatrão. E quem se obrigue a palmilhar a quintarola de ponta a ponta, não raras vezes opta pela dupla travessia da estrada, onde ela se intromete no amanho, tão-só para não ter de a contornar e nisso prolongar algumas dezenas de metros o trajecto.
Foi o que fez o caracol. E não é que nem um carro se lembrou de dar à história um final mais condizente, previsível que o dissessem?

ONDE SE PROVA QUE A DISTÂNCIA DA TERRA AO CÉU É MAIOR NO RIGOR DO INVERNO

Avassalador, o nevão teria caído ao longo da madrugada, para grande espanto de toda a gente. Sobretudo de quem tem por gozo visceral ou particular maneira de estar na vida a obsessão de se deitar tarde, sem pressa de mais nem promessas a cobrar. E como primeira reacção em função do assombro, a exultação de todos pela raridade do fenómeno numa zona de tão baixa altitude. As contas far-se-iam depois.
Das crianças, na idade do sacrifício de ir à escola, duplicou o regozijo, quando entre elas estralejou a notícia de que o professor ficara retido na estrada da serra, a quilómetros de distância. Com alguma sorte, até podia ser que uma avalancha os arrastasse, carro e dono, pela encosta abaixo, e a escola, por umas semanas, no mínimo, estivesse encerrada para efeitos de limpeza e reaprovisionamento. Entretanto, a exaltar o ausente, fizeram-lhe à entrada um boneco de neve de tais dimensões, que a porta da escola, desnecessária, deixou de se abrir.
Do carteiro, no dia a dia condenado a percorrer uma por uma as ruas todas de toda a aldeia, a pé, apoiado ou equilibrado contra a bicicleta, só lamentaram a falta aqueles cuja subvenção de reforma lhes acudia assim, pedalada e com que penitência mês a mês. Agora os outros, os das contas da electricidade e da água e não apenas, esses glorificaram o nevão e quantas invernias lhes aliviassem o lombo da canga mensal de tão despóticas despesas, com aguilhão e tudo.
Dos velhos, de luto pela viuvez e que teimam em morar a sós consigo, lá se foram três, duas e um, porque o frio lhes tolheu a voz e ninguém longe ou perto os ouviu gritar por socorro. E do armazém de artroses e reumático entre tremura e névoa nos olhos, onde acaba por ser sina sua esperar em grupo pelo barqueiro, também um embarcou ao ver a alvura da neve pela janela e desta se lançar de cabeça, imaginando-se a flutuar entre as nuvens. E o mais triste, porque ninguém chegaria a tempo de o esclarecer, foi ele ter morrido a acreditar que o céu era ali mesmo, ao alcance de um salto.
Dos bombeiros, também eles a necessitar de auxílio num quartel com os portões aferrolhados pela neve, ninguém teve pena. Nem ninguém teve competência para os arrancar de lá de dentro e botar à estrada, a acudir a quem, como eles, deles carecesse. De nada valeriam as fardas novas, escassos dias estreadas em cerimónia protocolar de enorme estrondo num meio onde cerimónias dessas não haverá todos os dias, com a charanga da casa, arrebatada até aos bemóis, a ser capaz de pôr ao léu lenços e olhos e narizes, tudo a fungar ranho e lágrimas.
Telhados a ruir com fragor, porque as ripas de sustentar as telhas não sustentaram o complemento de cobertura doado pelos céus, vieram a ser quase tantos como os que, com estoicismo, conseguiram a façanha de aceitar a dádiva e aguentar a verticalidade. Por fortuna, soterrados pelos escombros, houve somente três casos a desenterrar e a enterrar de novo, como se impõe, no cemitério: os ditos três velhos silenciados por ordem do frio. De acordo com o relatório da autópsia, já estariam mortos quando os respectivos telhados corroboraram a ordem do gelo oral e até tiveram o zelo, inútil, de se adiantar ao coveiro. E capoeiras depenadas antes da alvorada canora, estrebarias e currais sem sequer moscas, coelheiras sem cheiro de caganitas recentes, ou até gaiolas de pássaros com as portinholas escancaradas e os moradores por ora em parte incerta, tudo o que vida acolhesse e da vida fosse garante com a sobrevivência em perigo, tudo se viu posto a ferros e guardado à vista, não se lembrassem as trombetas apocalípticas de começar a tocar e a desenfrear a debandada geral e os assaltos em conformidade.
E dessa maldição porta a porta dos mercadores de peixe e congelados e demais quinquilharias comestíveis, pisando as buzinas em contínuo como anúncio contra a surdez militante, nenhum deles logrou sequer aproximar-se e ser castigo de orelhas quaisquer. Ninguém no lugar se lembra de tantas horas de paz, sem buzinas a azoinar nem vendilhões a requerer, e a merecer, a expulsão sob o azorrague divino.
E nem Deus se aproximou dos seus fiéis servidores, afinal, num lugar de tradicional investimento nas benemerências do além. Tão sério foi o nevão, que durante três semanas inteirinhas não houve missas nem padre. E nunca tão pouco se pecou por lá — comentou para si mesmo o sacerdote, varrido o interregno para férias invernosas estabelecidas pelo patronato celestial, ante o silêncio no confessionário.

MONÓLOGO A DUAS VOZES SOB SUSPEITA DE PRELIMINAR COMBINAÇÃO

Desdobrou o jornal e abriu-o a toda a extensão em quaisquer páginas, como se de repente lhe tivesse dado uma enorme sede de leitura, mas apenas e só a pretexto de atrás de tal leitura se esconder, atendendo a quem acabara de entrar no café. Gesto tardio, afinal, já que a muralha de papel logo soçobrou ao primeiro impacto do aríete das palavras de ouvir, que remédio, e não de ler.
“Vê lá se não entornas as notícias”— chalaceia, cáustico, quem chegou à mesa, entretanto, e se sentou sem pedir licença —. “Tens o jornal de pernas para o ar”.
Histórias há que se finam mal principiam. Esta, assim parece, tirando as medidas com rigor ao fato sepulcral vestido pelo leitor do jornal às avessas, apanhado em flagrante atitude de renúncia a qualquer modo de confraternização no momento. A não ser que o contra-ataque a tal obrigue, e aí, segundo as regras, não há regras nenhumas a invocar no contorno das conveniências.
“Ler ao contrário não é para toda a gente. Mas o que eu pretendia era mesmo que não me visses, nem mais”.
“E eu confesso que só entrei”— insiste a voz da corrosão primeira, na avidez de recuperar o comando das operações —, “porque pensei que a esta hora por cá não estarias”.
Onze e trinta da manhã. Um qualquer café na baixa de qualquer urbe a poente de nenhum país e de todos, com a algaraviada que incomum seria se não fosse a tal hora. Porque é sábado, acrescente-se. Também é conveniente notar que esta desmesura de luz, apesar de coada pelas nuvens altas e tonificada pelo espelho das montras e da humidade na calçada, só costuma verificar-se neste dia da semana e nas supraditas circunstâncias. O riso é fácil e ágil a resposta. Os lugares-comuns têm como nunca o seu espaço estabelecido na linguagem. Para quê teimar na descida ao éter inverso da presciência de que um fim-de-semana é quase instantâneo a sumir-se? Há que aproveitar dele as horas todas, toda a luz nele natural, embora coada por nuvens altas e só tonificada pelo reflexo nas montras e nas pedras escorregadias da calçada.
“Ia-me espalhando na rua”— reincide a voz intrusa no cosmos físico e temporal da outra voz, a que se finca em enjeitar a convivência, como se algo de cada vez menos secreto a tornasse inviável a um sábado, de manhã, e porque não aos demais seis dias muito bem contados, seja a que horas for, noite que seja.
“E teria sido uma pena”— confrange-se a voz avassalada, com o maior dos sorrisos de nem pressuposta contenção, se já antes comprovada a nula importância dada por quem ouve a quem porfia no vilipêndio da luminosidade consagrada por um sábado matinal, num qualquer café da baixa de qualquer urbe a poente de nenhum país e de todos.
Entre ambas as vozes, como se nenhuma delas tivesse rosto e olhos e boca, obreiros de quanto até agora se pronunciou e escutou, continua ao alto um jornal a ser parede, frágil que seja mas bastante para que a conversa morra, sem apelo e sem pena, de inanidade.
E sempre de pés para cima, como se desafiasse a gravidade, o jornal.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

DE COMO NUM MINUTO E MEIO SE ALCANÇA E SE PERDE O CÉU

Após o fastio da lengalenga de bronze, o sino bateu as sete, como vem sendo costume por toda a gente increpado, adiantando-se não menos que minuto e meio à hora certa. São horas de saltar da cama e zarpar no sentido de nenhures, assim os ventos colaborem e façam sumir as nuvens cuja descarga estará para breve. Minuto e meio, vendo bem, é muito tempo. E quando do declínio outoniço, já com a invernia posta de atalaia sobre quaisquer temeridades, pode mesmo ser um lapso de valor incomensurável no final de um sonho em decurso, por exemplo, se lhe reprimir ou alterar o natural desenlace dos acontecimentos em cena; ou no perfeito remate, sem atabalhoamentos, de uma acção que apenas se consubstancie naqueles instantes, rente ao desembrulho da alvorada a propor um novo dia em consabido retém fisiológico, se aos dois (terão de ser sempre dois em campo, no mínimo, nesta específica hipótese de ocorrências) tanto aprouver e apetecer. Quantos milhares ou milhões de bípedes, em toda a cama terrestre, não se fabricarão ou descerão ao nível dos vermes durante este minuto e meio?
Doem-lhe as mãos, obrigadas à friúra da água com que mal borrifa os olhos. E também lhe dói a incerteza acerca daquilo de que não poderá dispor em tempo algum, por via da hesitação má conselheira ou outra irresolução similar. E dói-lhe acima de tudo que outras mãos, e não as suas — estas mesmas que agora se lhe enrijecem na água de chapiscar as olheiras —, tenham acesso ao que lhe estaria reservado, por direito adquirido sem contestação mencionável, e lhe profanem o templo em que sempre sonhara ver transformado aquele corpo, aquelas túmidas carnes, onde só ele e mais ninguém pudesse reconfortar-se, saciar-se, refastelar-se. Eis como a cisma que conduza um indivíduo à opção de viver a sós consigo acaba por se revelar inconveniente, porquanto lhe empeçonha o tino ao submetê-lo a quanto houver de mais pernicioso nos próprios recalcamentos, os de mais funda estratificação, trazendo à superfície toda a miséria que com eles se recalcou.
Sai de casa sem sair, ou seja atravessa a rua de pijama, roupão e mãos aferrolhadas nos bolsos, entra no botequim em frente e dele regressa, minuto e meio depois, trazendo o jornal dobrado sob a axila esquerda e uns olhos de extasiante doação a causas santas, peculiares em quem tiver acabado de se deliciar com a primeira bica do dia. Nem deu para atentar na evidência de que já estaria a chover, à vinda, e só o espelho do elevador lhe deu notícia desse facto. Não o jornal.
À porta do café, a espreitar a chuva, ficou a dona. Uma matrona ainda nova, aí uns cinquenta ou além um nico, de túmidas carnes e olhos de serpente onde a hipérbole compassiva se não justificará, a desesperar por atenção e trato em conformidade. Basta reparar no tique nervoso com que ao limpar as mãos torce e retorce o aventalito de pano preto, a pender para o cinzento, de tão retorcido. Havendo quem se devote a causas sagradas, haverá quem as corrobore e acrescente sem a menor hesitação. Salta à vista, porém, que o maior dos problemas a transpor também tem a ver com a hesitação, mas da outra parte em jogo, sobre qual o momento do primeiro passo a ensaiar. Deveras má conselheira por excesso na prevenção, no acanhamento, no temor a uma resposta negativa e à escandaleira no contra-ataque do aventalito acinzentado, a pender para o negro, de tão desfraldado como estandarte de guerra em tempo dela se impor, a hesitação é uma merda.
Amanhã, chova ou não chova, após o fastio da lengalenga de bronze e das sete marteladas com minuto e meio de avanço, o conjunto pijama e roupão há-de fazer a travessia da rua e entrar no botequim, tomar a delícia do primeiro café e comprar o periódico, e tudo isto em minuto e meio, que mais nunca pareceu necessário. E até pode muito bem ser que então, demorando uns minutos mais, a afoiteza enfim predomine e evite continuar a emporcalhar-se na dita de tanto hesitar.
A não ser que a matrona, matreira e cansada de esperar que tamanha hesitação chegue ao lógico desfecho, afinal desejado por ambos, avise a polícia e esta, ao bater das sete no campanário com minuto e meio a menos, para ali se desloque em patrulha rotineira e cumpra o que lhe compete: recuperar para a segurança atrás dos muros aquele fugitivo ao tratamento nalgum hospital psiquiátrico, quem sabe.
Na manhã seguinte, no jornal, lá virá escarrapachada a notícia. Só ele, o primeiro cliente matinal, é que por ali não se verá para, em minuto e meio, comprar a gazeta e usufruir o gozo único, a suprema deleitação da primeira bica do dia, tirada e servida com muito amor.

HISTORIETA TÃO SIMPLISTA COMO A NOÇÃO DE QUE A TRAIÇÃO É COISA FEIA

Primeiro, não enjeitando a ordem natural, foram namorados, devotos e praticantes de uma paixão esbraseada em mútuas arremetidas, sem fim a ver-se nem a mínima precaução em não serem vistos e julgados à revelia. Depois, casaram, e o febrão depressa esfriou. Mesmo assim, aguentaram o casamento além dos limites do enfado, até que o ódio o clarificou e fez desmembrar sem dor, possibilitando que cada pássaro voasse para o seu galho e se predispusesse à concernente empreitada de entretecimento do novo ninho, e, sem surpresa, já bem secundado, como em tais sucessos se pensa ser lídimo e compreensível. Hoje, sob custódia do distanciamento e não apenas físico, portam-se como dois velhos amigos, telefonam-se, encontram-se uma vez por outra, e uma vez por outra dormem juntos como se o fizessem somente para matar saudades daquilo que nem viveram, porque o não souberam viver, de olhos nos olhos e de mãos dadas. E até conseguem o miraculoso feito, aquando desses cada vez menos raros encontros, de nunca entrar em controvérsia, seja qual for a razão, pertença a quem pertencer: aquilo que um quiser, quer o outro; o que por um for desdenhado, há-de ter do outro o desdém correspondente. Quantos anos não desperdiçaram eles, entretanto, buscando uma fórmula comportamental que sempre tiveram ali tão em frente dos olhos e não viram?
Têm mantido incólumes, cada um a seu modo, as respectivas ligações oficiais. Foi ponto de honra ajustado desde o primeiro reencontro em que o desafio a si mesmos necessitou de comprovante na cama. Aliás, qualquer deles, como antes nem à ameaça chegaram, veio a conseguir descendência a partir do novo conjúgio, ela um filho e ele uma filha, o que lhes tem valido como lembrete contra os abusos da sorte, ou a paz agora alcançada correria sérios riscos de se desfazer com a insistência na combinação pelo telefone de escapadelas ao fisco conjugal, se cada vez menos raras, como já se denunciou; ou cada vez menos espaçadas e logo mais próximas entre si, com o ferrão da apetência a instilar em cada uma o veneno da naturalidade, que o mesmo é dizer da contínua aceleração, como todo o corpo lançado num precipício em queda livre às ordens da força da gravidade. Os maiores perigos, nestas lides, são mesmo o da habituação à não obrigatoriedade da prestação de contas a ninguém, o da pressuposição de impunidade, e, por consequência, a gradual frouxidão na vigilância a impor aos próprios passos.
Nada sendo em boa verdade um ao outro, bastante curioso viria a ser este caso se os filhos, a filha dele e o filho dela, porque já crescidotes e na idade semelhantes, viessem um dia a conhecer-se e a apaixonar-se como aos pais aconteceu, e a casar também e a perseguir deles todo o modelo vivencial de que nunca souberam fosse o que fosse, até que se tornassem velhos amigos, se telefonassem e reencontrassem uma vez por outra, na cama ou num qualquer matagal à beira-mar, imunes ao visco de olhos fardados ou à paisana e a remorsos.
Gostariam os pais de saber que os filhos, ignorantes de toda a história calcorreada desde a fogueira juvenil à amadurada mornidão, em tudo se diriam determinados em deles decalcar a trajectória e os vícios?

BALADA EM TOADA MORNA PARA CONSUMIR SEM PRESSA NEM MUITA SEDE

Rutilantes como promessas de amor eterno em noite de embriaguez por temor à negativa, aquelas sardinheiras naquela varanda parecem ter luminosidade própria, fósforo, radiação. Sem empenho de maior, a horas tão adiantadas, tão fora de horas, conseguem saltar à estrada dos olhos de quem passe em frente, no outro lado da rua. Mesmo que o suposto viandante apenas vagueie com a moinha dos pensamentos noutra galáxia, elas, as flores, tornar-se-ão asteróides e virão de lá de cima perturbar a órbita imprimida aos passos. Por muito decididos e sólidos que se evidenciem, logo baquearão perante a incandescência que a negridão nocturna, em vez de atenuar, galvaniza.
Se agora, a completar o quadro e a dar substância à história, surgisse sobre a vermelhidão da fileira de vasos, na graça da mão enluvada de uma princesa, um pequeno regador de faiança branca a matar a sede às flores daquele jardim em suspensão, dir-se-ia, porque tanto a luva como o gesto se revelariam com a macieza do veludo negro, tratar-se de um truque de magia. O regador branco, com leveza de pássaro em vias de acasalar e montar casa, pareceria ter asas e esvoaçar sobre as sardinheiras, regando-as a todas, uma por uma, como se ninguém lhe pegasse e ele a sós se erguesse contra a sede vegetal. Por fim, sairia de cena, sem suscitar aplausos ou pateada, e talvez deixasse entrever por momentos, que nem o luar a escapar-se à asfixia das nuvens, a alvura imaculada de um semblante de porcelana. Uma pincelada fugaz. Uma visão em que o imaginário substitui os olhos, com vantagem, e se vale da imponderabilidade como argumento. A ideia que fica contará mais que a realidade, já que a realidade teria sido tão-só um fogacho de luz a esbater-se na treva como um eco nas vertentes. Será que amanhã, à mesma hora, se repetirá o feitiço do regador esvoaçante e da imagem, sem nitidez de contornos mas capciosa, de um rosto de princesa sem príncipe que lhe dê em que pensar?
É bem mais feliz, contudo, o final da história. Naquela mansarda, com um gatarrão sem nome e dois periquitos muito bem engaiolados para sua protecção, apenas vive desde a condenação da reforma uma velha marafona, meio trôpega e desdentada, que ainda guarda e se serve de uma das luvas, só uma, do tempo em que era mesmo princesa e tinha aos pés, derramados, os cavaleiros todos de toda a cidade. O veludo já estará puído e conspurcado pelo uso, mas de noite não se vê.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

HAVENDO ISCO E QUERENÇA DE QUE A CANA DE PESCA SE NÃO PARTA POR ENQUANTO

“Só quando os cavalos-marinhos relincharem ou derem coices, o que equivale a dizer nunca”—, diz o velho, sem desviar os olhos da água e da bóia nela espetada, rutilante, a balançar conforme a ondulação do rio, ali convertido em lago mansarrão e farto, que não de peixe. Nada melhor que a pesca como terapêutica contra o processo degenerativo de alguns valores desde sempre tomados por primordiais. Mas o que são e quem os galvaniza e defende, tais valores, quando até a simples atitude de viver, hoje, torna cúmplice da hecatombe galopante quem se confine a isso mesmo, viver, respirar e fruir a existência como se a calcorreasse de olhos vendados e tudo julgasse harmonioso em volta dele, ou como se outras existências nem valessem o desconsolo de as pressupor no activo e ao ataque? Só a pesca tem em si a temperança que propicia aos intranquilos a fleuma e aos fleumáticos a outra face lunar, para que sobre ela pesquem e mintam sem que o desmérito do resultado lhes tinja o rosto de escarlate.
Quem o conhecia, àquele velho, sempre o soubera matreiro nas falas, perspicaz na colheita de dados a utilizar depois como argumentos de acutilância certeira, instruído e mais traquejado em lides elocutórias que os filósofos helénicos, famélicos atrás do pão mínimo à troca por agouros falaciosos entre oliveiras e ruínas. Era ele, em boa verdade, o paladino de quantos torneios de promoção da facúndia decorressem nos auditórios de maior credibilidade, ainda que situados não muito acima do pó da estrada sublinhado por bostas ou caganetas de cabra e rodados de carroça. Que alguém se propusesse persuadi-lo a seguir por qualquer via retórica que não a por ele estatuída, ou se atrevesse ao ultraje de dele se rir ao escutá-lo! Dar-lhe a volta — como é hábito dizer-se ao assumir a derrota —, isso é que não.
“Só quando houver peixes-voadores a entretecer o ninho nos beirais ou no arvoredo, o que significa jamais”—, reforça o pescador, de olho nos estremeções da bóia à tona de água como único motivo aparente, no momento, a suscitar-lhe a atenção, a ocupar-lhe as casernas onde o pensamento dormita e recupera do esforço, a proporcionar-lhe paz como contrapeçonha para as malfeitorias mundanas.
Se a fartura de peixe a pescar correspondesse às expectativas sempre investidas ao aparelhar a ferramenta e a lancheira, perfeita viria a ser a terapia contra a arremetida de quantos façam da casmurrice lema e estandarte. E a mentira nunca necessitaria da amostragem de provas passíveis de compra em qualquer supermercado. Não havendo peixe, porém, também nada obriga a que não se obtenham bons resultados com o tratamento. O simples gesto de lançar a linha à água e de a ver pendente, oscilante, prometedora ou a negacear a oferta, conseguirá ser tanto ou mais tonificante que analisar uma tela cuja significância se nos escape e por isso nos prenda, nos arrebate, nos interiorize, nos inculque o gáudio que experimentaríamos se ela tivesse sido produto de nossa lavra e cultivo e prazenteira colheita.
“Só quando a sardinha cair na rede já frita e pronta a comer, o que se sabe impossível de acontecer em qualquer tempo”—, remói outra vez o avô pescador, a sorrir para ninguém, atendendo a que está sozinho na margem do rio, num ponto onde a pesca, hoje, tarda em aliviar os olhos da sobrecarga de noite em que a manhã, por vezes, se prolonga até à manhã seguinte e às outras todas.
“Enquanto manhãs houver, haverá luz a nascer até que não”—, dizem os olhos velhos a quem os espreita lá de baixo, do trémulo espelho de água onde se contemplam, irresolutos, ou onde outros olhos também velhos aproveitam a conjunção e se lavam devagar, devagarinho, que o tempo urge em mostrar-se a limpo.