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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

EM ROMARIA À SEM MEMÓRIA DO NADA QUE A DITA TENHA RETIDO SEM QUERER

Vai uma tarde de Outono em fidedigna arremetida: o céu límpido, ou quase, não fora a mantilha de névoa a esbater ao de leve os contornos mais apartados de quem, de aquém, os perscrute. E o vento, matreiro, sujeito a repentes de ira conforme lhe dá, enfarpelado de gelo nórdico e arrepios para a cerimónia. Nem a plenitude solar garante protecção satisfatória, apesar do consolo a dar alma à pele, contra o despotismo dos pontuais calafrios espinha acima.”É tempo disso”—, resmoneiam os mais idosos entre si, como se desconfiassem de que lá para o ano a cair já por cá não estarão entretidos com resmungos.
A fanfarra, afinal um misto de artroses e reumáticos tão antigos como ela, centenária, veste de novo. Talvez algum mecenas emigrante nas estranjas. Ou um qualquer ricaço na hora de prestar contas acerca do medo de morrer culpado. Fosse quem fosse, alguém oferecera à velha senhora fardas novas e nova instrumentação, como agora se pode ver e ouvir, no coreto. É dia de festa, dobraram todos os sinos e sinetas, e estremeceu nos ares, desfraldada a alva, o foguetório. Só o homem da tuba, lá por detrás, não tem nos olhos o brilho que o instrumento por ele carregado, mais que os mais, reflectirá. É que até mal se lhe vêem os olhos, de tão amortalhados no avesso das pálpebras. E quando eles não se querem à vista, algo lhes dói, bem se vê.
Dias há em que tudo parece acontecer ao contrário daquilo que se diz ser da norma em normalidade. E até um par de suspensórios, porque preferido à tortura do cinto desde a momice da primeira fotografia de calções e boné, poderá empertigar-se em questão intransponível, sem remedeio no imediato. Basta, por exemplo, que um dos elásticos de si e se esgarce ou rebente, fazendo com que as calças, meio apertadas, ameacem não acompanhar o restante na ascensão, quando começar o desfile de consagração por todas as ruas da vila. E daí ao braseiro, nas têmporas já rubicundas do homem da tuba, ter-lhe-á bastado um leve sopro, uma troca de olhares e narizes a fungar em torno, o dissimular de que ninguém ali mesmo à beira se apercebera.
O velho e venerável mestre da banda, já aposentado e agora devotado à cultura de melopeias comestíveis na horta, ainda hoje se pergunta o que é que teria acontecido, naquela tarde, à incontroversa sensatez do homem da tuba. Depois da desvergonha de alguns bemóis retardados ou deixados ao abandono na pauta, de repente, como se o devaneio de ter asas e voar lhe desinquietasse a mioleira, viu-o de calças na mão a saltar do coreto e a sumir-se no charco da zombaria geral.
“O que mais me encanzinou foi o desastre dos bemóis falhados”—, diz ele, o velho maestro e ora juvenil horticultor, a quem entre repolhos e nabiças, quiçá cantarolados a compasso, o procure.