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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

domingo, 3 de agosto de 2008

NUA NARRATIVA SINGULAR SOB INSPIRAÇÃO GENÉTICA QUANTO À NUDEZ

Seriam vinte os degraus, de madeira antiga, entre cada piso. E o piso dele era o terceiro. Quarto independente, com a porta directa para as escadas. Um privilégio. Horas de entrar ou sair, sem olhos plantados na rigidez sonâmbula de quaisquer ponteiros. Quanto a companhias, durante a lonjura da noite ou mesmo de dia, isso é que não. Nem um amigo de passagem pela cidade, velho ou novo, um colega de ofício a invocar-lhe o préstimo de ensinamentos, algum parceiro de noitadas ao relento em fase de ganhar balanço para a subida ao cume de mais uma. E daí, porque os escribas bíblicos assim propuseram, a tentação de prevaricar e mordiscar a fruta também seria uma constante.
Primeiro, às escuras, a apalpar todas as frinchas de luz e a contar um por um os degraus todos, sessenta, subiu ele, porque inquilino, e logo com direito a dispor de chave própria. Instantes depois, na ponta dos pés e de idêntico modo na treva, contando e descontando os sessenta grunhidos, grasnidos, relinchos de outras tantas tábuas pisadas, lá se empertigou ela, em epopeia de esgares nem imagináveis, no martírio promotor de uma ascensão a repartir, de preferência, em duas partes iguais. Algures, subscritas pela brisa nocturna, quatro badaladas.
Uma hora mais tarde, quando no eco ainda ululava o sobressalto das cinco pancadas de bronze e se lhe juntou a traição das dobradiças da porta do quarto no vácuo obscurecido das escadas, a luz acendeu-se, de súbito, e pôs a nu e a cru o projecto de fuga então em prática. Ia já a descida desde os jardins celestiais até à rua aí pelos trinta degraus, entre o segundo andar e o primeiro, e a todas as portas, entreabertas e à espreita, se lhes escancarou a boca: com um pé pousado no ar e o outro na podridão da escadaria, um homem todo nu, todo encolhido, todo arranhado, procurava tapar com as mãos todas o tudo à vista de quantos viriam acompanhando, desde há uma hora, todo o frenesim de batuque audível no terceiro andar. Quando ele se virou, em busca dos últimos trinta degraus a caminho da incógnita da madrugada ao ar livre, mostrou a chaga das costas a escorrer sangue.
Aquele quarto, afinal, além da porta para as escadas, tinha outra para o interior da casa. E foi por esta que a dona da pensão conseguiu não se precipitar no alçapão do escárnio rente às cinco da manhã. Olha se o marido acordasse da ressaca, como teria acordado todo o prédio, e desse com a friagem dos lençóis no lugar dela. E do inquilino de cor escarlate, que ainda não pagara a renda do mês e por lá deixou ficar malas e tudo, é que ela, a fera, nunca mais soube.
Dizem ter sido ela a acender a luz das escadas, doida de cio, quando o rapaz, em pânico, se lhe furtou das garras e preferiu a ignomínia da noite sem roupa nem frio.