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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 29 de abril de 2008

DA NOBRE ARTE DE REPARTIR A INSÓNIA EM DUAS PARTES E NADA DELAS SOBRAR

Cinco horas, treze minutos, os segundos imparáveis como é de regra, e o sono, onde está ele? A luz da rua diz-se pelas frinchas, não perde tempo a pedir licença para entrar. Deixá-la vir. Também não há-de ir longe, tal a fraqueza. Já o sarro na gorja é mais explícito. Em motejos ranzinzas, afirma-se à plebe, ruge em formato de protesto enfurecido contra si mesmo (pelo simples facto de de si se aperceber), e lá acaba por desistir, já de lágrimas nos olhos, extenuado, humílimo. Desistir, afinal, nem sempre é apanágio dos fracos, e pode revelar algum tento de reserva na moleirinha. É que o serão de ontem, irmão bastardo de tantos serões bem comportados, deixou os sinais habituais em quem se tenha viciado em seroar um tanto além da cerca. E tudo na vida se paga, pois paga, e logo em géneros.
A aurora, não tarda muito, vai aparecer — de acordo com os espertos na matéria que dá vida à horta — cinzenta e fresca, com muito fortes hipóteses de chuviscos, em forma de neve nas terras altas, consoante as horas corram dia abaixo. Que não será de passeatas de restauro na mata. Nem de merendas apontadas à sobremesa, no fim, de caruma a martirizar costas sem dor. Nem de fuga à morrinhez pensante —, não passível de prevenção com rigor pelos cujos cuja função é desatar, ou atar de novo, o odre de nuvens e ventania, quando grávido e propício à consensual multiplicação de nabos e couves.
Também os galos circunvizinhos, de mecânica milenar mas perfeita, não deverão demorar grande coisa a dar impulso ao ajuste de contas canoro de cada dia, cada qual empertigado em seu belo poleiro e seu belo harém, ao dispor, a qualquer hora. Gado feliz e afortunado, este, o dos galarós, não o das galinhas. Cantores, cobridores, e o que mais seja, conquanto não se tornem canja.
Há relógios emboscados por toda a casa. Nas mesinhas de cabeceira, nas cómodas, nos guarda-roupas, nos armários de parede, nas casas de banho, no vestíbulo, na cozinha, nas salas e saletas, no corredor e nas escadas de acesso ao sótão, na biblioteca, no escritório, nas três varandas, na garagem, e até no jardim. Quer de corda, quer a pilhas, quer submetidos aos arbítrios do astro-rei, tudo funciona. Tudo bate em uníssono as horas todas. Tudo avisa toda a gente de que no peito do tempo é inalterável o compasso, é inexorável a marcha. Porque o coração temporal não pára para obras, nem para meter combustível, nem para tomar balanço em descidas. O tempo, a sério, nem se mede nos relógios, não, mas no abismo das rugas, no zelo das próteses, na quebradura dos ombros, na mentira dos olhos ridentes, e sobretudo nas disfunções onde se adivinha, abaixo do umbigo, gota a gota, sem sucesso, por mais sacudidelas que se lhe ofereçam. E tantos relógios cá em casa para quê?
Talvez para que a casa se escute e fale, diga de si, embora numa toada monocórdica, mas viva. Serão algumas dezenas de tiquetaques a soar algures, corroborando-se, salientando-se ou confundindo-se num só, alto ou nem isso. E de hora a hora, pelo menos, em todos os cantos, a casa borrega, chocalha, plange, badala, zune, chia, silva, tilinta. Faz-se voz escorreita de mil bichezas sem voz nem direito à palavra que, em anos anteriores ao homem — diz a prosa dos fabulários —, teriam tido e usado com sapiência e mestria.
Além do mais, há os bocejos, empastados, bafientos, lacrimejantes ou a seco, repetitivos. Uma espécie menor descendente da pose artística de quem se entregue à delícia de se espreguiçar a toda a extensão dos braços. Nada a fazer, senão deixá-los esticar a pele das maxilas desde uma orelha até à outra, em qualquer dos dois sentidos.
Alguém faz tocar a campainha. O toque denuncia-se como da entrada no prédio, e não da porta de casa, já no patamar. Haverá que inquirir quem é, pelo interfone, e abrir depois, ou não, a porta, carregando na respectiva tecla do aparelho. Ou então fingir que não está ninguém, e ignorar quem tiver tocado, seja quem for. Contudo, o mesmo alguém persiste, recarrega a intenção invasora, repete o grito eléctrico até ao estrídulo arfante dos grilos embriagados pelo cio. Quem será? Seja lá quem for, está dito: aqui não entra. E até podes bater com os cornos, grande filho-da-puta, pode ser que os partas…
“Entra lá. Estava longe de supor que fosses tu, a uma hora destas”.