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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 14 de maio de 2008

NEM SEMPRE A BOA SEMENTE GARANTE BOA COLHEITA AO SEMEADOR

Um mendigo, tão elástico como fedorento, pula do breu na vertical e corta-lhe o ímpeto andante, rogando, só com a mímica universal dos dedos em tesoura à frente da boca, um cigarro. Traz névoa nos olhos, o vadio. Mas nem por isso lhe nega o objecto de rogo e a simpatia de lhe chegar o fósforo aceso em complemento. E, como se compreende, aproveita o esforço altruísta e dá-se lume a si mesmo, enquanto, num golpe certeiro do instinto àquela distância, consegue encestar o maço amarrotado numa sarjeta sem grade do lado oposto da rua. É aí que, como prémio, porque o júbilo dos ganhadores tanto exige, ou porque o estarreceu ter só dois cigarros aquando da abordagem mendicante, ele toma a enrugada decisão de deixar de fumar. E entra no primeiro bar que por azar descobre ainda aberto, já com o dinheiro contado na mão, para comprar um novo maço.
Sempre se soube existir um abismo enorme entre a vontade, que não apenas desejo, e a capacidade de pôr em prática os intentos tomados por norma de conveniência, por necessidade, por mera prevenção de acidentes na jornada de luta entre o berço e a cova. Os vinte cigarros, agora comprados, não se pretenderão marco ou brasão em relação ao vício a despir às claras? Ou seja, não deixando de correr riscos, algo a impor-se como lembrete, na algibeira, nas mãos, na súplica dos olhos ante quantas baforadas os fizerem arder? Não, nada disso. O truque é simples: virão a ser oferecidos com lume e tudo, um por um, a outros tantos mendigos que do breu saltem, como aquele de há pouco. É, ou almeja ser, uma terapia de choque, com algum sofrimento e o perigo de sufoco a qualquer instante. Mas valerá a pena.
Uma avenida há muito anoitecida, em zona portuária, exposta a tudo o que se considere um nico além do nefando e onde até o ar respirado será podre, pode ser um bom campo de manobra. Mendigos, uns sob a égide do desemprego acomodado a sem esperanças nem procura, e outros por opção agrilhoada a não certezas, há por aí muitos. Preciso é ter paciência e esperar que ataquem, que se descosam da treva, que venham ao cheiro e se rendam à premência de um cigarro sem custo, caído do céu, com lume e tudo. O fumo inebria, o sabor conforta, e os pulmões, qual ilhéu avesso às rotas, decerto saberão perdoar a quem os castigue e neles desafie a própria vulnerabilidade.
“Já não fumo, muito obrigado”—, diz-lhe um, o primeiro, que nem do cartão se levantou, atafulhado em trapos e jornais sem data.
“Não fumas tu, fumo eu”—, responde quem toma por provocatório o desaforo da recusa e de imediato se afasta, a passos de metro e meio, envolto numa nuvem mista de vapor de água e fumaça.
“Far-me-iam maior arranjo umas moedas, ou uma nota”—, diz-lhe o segundo, sentado em posição ióguica e exibindo a correcta dicção de intelectual desencantado, algumas esquinas e respectivos semáforos mais adiante. Ao lado do vagabundo, a encimar meia dúzia de livros, junto à parede, dormitam um coto de vela e um par de cangalhas, de arame, com uma das lentes quebrada e a outra em falta.
“Também não queres? Quero eu”—, remorde agora, à luz de mais um fósforo riscado pelas mãos em concha, o piedoso, a tombar em queda livre e a submergir no lodaçal da frustração. E depois ainda por aí há quem diga que é fácil fugir a um vício, desde que outros valores mais alto se alevantem.
Chegado ao fim da avenida, em plena doca, só lhe resta o cigarro que ora se lhe adivinha colado aos beiços. Eram vinte, nos primórdios da jornada filantrópica até ao mar, e vinte foram as tentativas de alijar a carga infame em prol do bem. Ninguém dele soube merecer tamanho apego, tão desinteressada atitude, tal pundonor.
No regresso, avenida acima, comprou outro maço de cigarros e jurou que nem um daria a quem quer que fosse, mendigo ou não.