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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

domingo, 20 de abril de 2008

SOB A GRAÇA OPCIONAL DE NÃO TER CONTAS A PRESTAR A DEUS NENHUM

É uma aldeia nascida, há centenas de anos, no sopé da serra. Ou com as costas desde sempre guardadas pela imponência daquela mole de penedia e matagal, e com o resto do corpo a espreguiçar-se na lisura do planalto, soalheiro, apontado ao Sul. São vinhas, hortas, pomares, milho, centeio e algum trigo, mais para forragem e cama do gado que pão. São rebanhos de ovelhas e cabras a tentear os primeiros degraus da serra após as últimas chuvas; são moscas e cavalos sem cauda que lhes proteja o corpo, nanja a alma; são um jerico e outro, a filosofar a meias sem moderador; são bois e tractores sem invejas nem regateio de funções; serão cães e gatos, ratos e galinhas, como em toda a parte onde houver gente crente na sobrevivência a si própria. E é gente, em dimensão natural, caminhando só sobre duas das quatro distribuídas à partida. Gente sobrevivente, portanto, creia ou não na existência de quem se diz ser o autor de quanto mexe por aí.
Como curiosidade de assarapantar, e assustar, as redondezas, jamais na povoação se fez erguer e impor qualquer templo: igreja, capela ou mero cruzeiro de tartamudear responsos e fé ao relento. Nem por ali sobraram resquícios, mesmo de eras já resumidas à poeira mentirosa das lembranças, de mesquitas, sinagogas ou pagodes. Nunca naquela terra houvera mãos e olhos erguidos às alturas, em prece gemebunda ou protesto contra inclemências do clima. Nunca naqueles calhaus se esfarraparam joelhos para pagamento a pronto de promessas. Nunca dali se arrastaram, aos magotes, de rosário nos dentes, pela berma de quilómetros e quilómetros de estrada, rumo a santuários licenciados para o fabrico e comércio de mezinhas curandeiras, pés cujo martírio se venderá a quem mais contrapartidas lhes prometa. E no cemitério, embora por lá se perfilem ciprestes, não há cruzes, epitáfios ou flores a apodrecer sobre as campas, simples, de terra. Apenas terra, escura e fértil, aos montículos, que os vermes também são gente.
Há que atacar, que montar o cerco, que dizimar os incréus e arrancar de lá a inocência das crianças, no mínimo, antes que a praga trepe as vertentes serranas, espreite em redor e invista contra os crédulos dos povoados circunvizinhos, onde sempre foi escutada a voz dos sinos e ao seu apelo se acorreu, quando preciso. Nessa sodoma de modernas apetências, temperadas pela actual depravação dos costumes pelo que aí se diz —, nem uma sineta de barro tem direito a pronunciar-se em mãos catraias. Mas em que argumentos pegar, como auto lavrado e ferramenta executória, se durante tantos séculos nunca a cruz, ou o crescente lunar, ou o candelabro heptanemo, ou outros instrumentos de pesar a fé respectiva, ali se quiseram pendurados ao peito, amados como ícones, obedecidos como amos, nem mais?
Até nas fontes vaticânicas já correm murmúrios e se avançam teorias acerca das movimentações a imprimir, se bem que aquela minúscula terreola nem conste dos mapas. E há penitências prometidas e dadas à estampa nos jornais todos, televisíveis ou de limpar vidros, em prol de uma exemplar sonegação do fenómeno, não vá ele ganhar raízes e dar fruto na imensidão, fecunda, das planuras envolventes. E logo as forças vivas do episcopado local tomam posição em volta, apontando a metralha de homilias com ameaças de excomunhão, por um lado, e, pelo outro, com a doação de terras e casas aos moradores desistentes da prossecução em luta contra a invasão das sotainas. Ninguém, que se saiba, desistirá.
Apesar de tudo, prepotente, paramentado a rigor, alheio ao estranho silêncio em torno do cerimonial (se nem os foguetes se atrevem a ter maior impacto que peidos), o bispo põe grande empenho em mostrar as mãos sujas de cimento, ao abençoar a obra, depois de colocada no solo a primeira pedra da futura igreja. Quão exultante, que belo, com que magnificente contraste se afirmará aos cristãos, como óbolo dos céus, o novo templo, tendo em atenção a alvura das paredes contra a obscuridade das muralhas serranas, ali mesmo atrás. Ninguém, além da camarilha arrebanhada pelos acólitos da cruz, assistirá à primeira missa, seis meses depois, consagrando a inauguração. E ainda bem: o penedo, gigantesco, lançado desde os altos cumes pela força bruta de uma repentina tempestade, tal qual nenhuma antes vista, com fragor e precisão de míssil controlado de perto, despenhou-se no vértice do telhado da santa casa, mal acabada de estrear. Só o campanário, com os sinos ensandecidos e em rebate involuntário, conseguiu manter a verticalidade. E no interior, por debaixo do entulho, só entulho. Nem uma alma se quedou no corpo em que se faria transportar.
Deus escreve direito por linhas tortas —, zumbem alguns, descrentes, como se a língua deles fosse ferrão de vespa. Às vezes, não —, rosnam outros, benzendo-se com convicção de sacristão no desemprego.
Hoje, em todos os povoados por ali encontrados, que não naquele, os mártires daquele dia de céu ao contrário, como bem se compreende e aceita, dão nome às ruas e praças. E fazem-se peregrinações mensais ao lugar da tragédia, onde só o campanário, que nem dedo acusador, continua a apontar as altas nuvens em marcha.
É no sino que os cachopos, à pedrada, afinam a pontaria. E vá-se lá saber porquê a aldeia enriqueceu em relação às restantes.