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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

QUE PELO MENOS SE EXALTE A MEMÓRIA DE QUEM BOA MEMÓRIA NOS DEIXE

O homem do chapéu de coco tirou o chapéu e sentou-se, como era de sua particular opção há muitos anos, naquele mesmo banco de todos os dias, voltado ao rio, ao meio da mesa de madeira, talvez de faia, do jardim municipal. Na mesa pousou um baralho de cartas, e sobre ele, como se o escondesse de olhos indesejáveis, pousou o chapéu. Olhou em volta, retirou um livro de um dos bolsos do casaco e dedicou-se, a partir de então, ao velho culto de entretecer os próprios pensamentos com os de outrem, os do autor do texto, o que se poderia inferir pelos sorrisos, pelas contracções faciais, pela sobreelevação assimétrica das sobrancelhas, pelo tremeluzir ocioso das pestanas. Convém informar que antes de nele tomar assento, qual ritual de nascença incógnita, o homem do chapéu de coco, por precaução, desdobrou e estendeu no banco um lenço de alvura ímpar.
Daí a instantes, a coxear de ambas as pernas, ou a caminhar como se o chão estremecesse a cada passo e necessário lhe fosse vincá-los um por um, o homem do boné aos gomos e óbvia bengala cumprimentou o homem do chapéu de coco, mal tocando com a ponta de dois dedos na pala do boné, e sentou-se no banco do lado oposto, de costas para o rio e para a frescura da brisa de lá proveniente. Só isto justificaria a demasia de roupa, nesta altura do ano, com que o homem de bengala e boné aos gomos se enfarpelava. Registe-se o pormenor de ele se ter sentado directamente na tábua, talvez de freixo, do banco. A pintura, em esmalte verde e decrépito, não daria para ver. E lenços de alvura ímpar, como o do homem do chapéu de coco, não abundam. Depôs o binómio bengala e boné no espaço ao lado das nádegas, e ficou-se em contemplação atenta das feições do homem do chapéu de coco dado à leitura, a antecipar-lhe os trejeitos mínimos, os esgares de nenhum peso, a trégua de arcadas em perscrutação profunda. Ainda se tivesse trazido um jornal ou uma revista. Mas não trouxe. Nunca trazia.
Um minuto após a devolução da acalmia gestual à paz possível num jardim público, surge lá ao fundo o homem da boina basca, também ele a manquitar de modo brando. Fuma cachimbo e traz à ideia uma velha traineira mais ondulante que as ondas e a requerer cais final e sossego, onde de vez se desmantele a noção do dever cumprido. Com a boina de píncaro erecto na mão, saúda os antecessores e logo trata de ocupar o posto de sempre, à direita do homem do chapéu de coco e à esquerda do outro, o do boné aos gomos e bengala. E como ainda não é proibido fumar nos jardins da urbe, despeja o morrão de cinza na relva e reenche a fornalha para nova ida à pesca no alto-mar. Um dia há-de vir e ele sabe em que a nuvem de fumo será tão densa, que ninguém o verá, nem ele, de regresso ao cais de abrigo. É afim da teoria, entretanto, de que a madeira utilizada na construção da mesa e dos bancos é de choupo. Mas não insiste. Não acha que o pleito lhe mereça a sujeição à demanda de indícios comprovativos debaixo das mil e muitas camadas de tinta averdungada de tão antiga. E também se não preocupou com a possibilidade de se sentar sobre a caganeira esvoaçante de algum pássaro, se lenço nenhum traria consigo.
Meia cachimbada depois ou nem tanto, no palco arenoso e relvado, o último actor previsto no guião sobe à cena. Tão para lá do tempo que vale a pena como os outros, não tem chapéu nem cabelo. Dir-se-á até realizado com a assunção da calvície total, do género inexorável, sem a mais remota penugem. Volvido o quase tumulto dos cumprimentos de quem chega a quem está e vice-versa, preenche então o derradeiro lugar à mesa, que ele interpõe como feita de carvalho, nem mais. Dos quatro, sopesando a chamada lei das compensações, afinal, é o único que usa bigode, já branco e acastanhado no meio por causa do que se sabe. E com a entrada deste último actor, que lenços só para assoar o monco, chega ao fim a primeira parte do drama. Salte o baralho para o meio do terreiro, que agora a leitura vem a ser outra. Uma calva de bigode a compensar e uma boina basca, formando equipa contra um chapéu de coco e um boné aos gomos com bengala. Todos os dias, no remanso do jardim municipal, desde há décadas.
Foi como se o piloto, ejectado a horas, antes tivesse tomado por alvo aquela mesa (de pinho vulgar, segundo o relatório) em que o avião se despenhou. Confrangedor foi descobrir que eles tinham combinado e jurado a quatro vozes que nenhum dos quatro incorporaria o funeral de qualquer deles. Mas foram os quatro a enterrar ao mesmo tempo, e ali, na cratera, foi-lhes erigido um memorial, em pedra, no qual se irmanam um chapéu de coco, um boné aos gomos com bengala, uma boina basca de píncaro em alvoroço, e a lisura de uma bola de bilhar, toda ela luzidia, com bigode.