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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 18 de novembro de 2008

PASSEATA DOMINGUEIRA A SÍTIOS IDOS POR CATÁLISE DO IMAGINÁRIO

O poço, ao fundo da quinta, com a horta ali ao lado. E por cima dele, a coadjuvar-lhe a função, o moinho de vento. Perto, valendo-se de igual modo da fartura de água na terra, o pomar de tangerineiras completa o primeiro quadro observável. Outras árvores, todavia, dispersas pela encosta, também posam para a eternidade do que nem a almeje e use como única dinâmica impulsora em vida ainda, se a condição de estar vivo em tempo útil é uma gota, comparada à incomensurabilidade de milénios da condição outra, a de estar morto. E também por ali vivem alguns arbustos de não menor importância no proveito, plantados em eras idas ou espontâneos, sem exigência de quaisquer cuidados, como medronheiros, marmeleiros, loureiros, espinheiros, além dos crónicos silveirões, pensados como vedação natural contra intrusos, bípedes e apaniguados ou correlatos.
em cima, no monte que tudo cerca e domina com excepção do céu, a predominância é de pinheiros, mansos e bravos. São eles a moldura final do quadro aquém da hora de abalar. Deles é a lembrança última de quem arremeta a estrada sem propósitos de um dia repetir o gesto em sentido inverso. E poucos foram os que a tal desistência se deram, reduzidos a si mesmos, com olhos de cão cabisbaixo e rabo metido no lugar onde é comum vê-lo metido em tais andanças. Entretanto, luras e luras se calculam escavadas no saibro onde os pinheiros se fincam e contestam o domínio da ventania. Já nasceu há muito o sol, e daí não se encontrarem senão breves rastos dos moradores nas ditas luras de saibro. Hoje é domingo. Logo, dia de nem um pé botar fora de casa, o que se traduz por dia de dieta a rigor contra a gula predadora, canina ou pior, se for de dípode sem corrente nem dono mas esfaimado pela inata predisposição de bem pespegar toda a bravata.
Ouve-se um tiro. A passarada sacode os ares num alvoroço, ainda que o tiro nada tivesse a ver com ela. E há um cão a latir, de todo votado à desagradecida posição de subalterno, apontando às silvas. Quem sabe se delas não salta um fauno assanhado por lhe perturbarem o assédio a alguma ninfa de avantajadas carnaduras por estrear. Ou algum filho de ninguém consagrado à vadiagem. Ou qualquer facínora em fuga às patorras da lei e ali hospedado à espera de mais fraca luz na rua. Ou a singularidade de uma peça de caça sobrevivente à matança dominical autorizada. Só que nada de nada se escuta, varrido o eco e recolocado o sobressalto dos pássaros no arvoredo, em resposta ao estrondo, que até foi capaz de levantar folhas do chão e quase as restituir aos ramos de origem. Em todo o espaço envolvente paira a modorra favorável ao arbítrio das horas de não ir a parte nenhuma. Mas quem é que atirou, e contra quem ou contra quê?
Ainda ninguém falou, de propósito, da casa. Talvez porque se situe na estrema de cá da quinta e nada de notável nela se note. A vulgaridade tem também os seus pormenores a considerar como utilitários, e com tanto direito a menção em acta como outros de outra mais espevitada e empenachada ascendência. Parece que foi mesmo de lá, de uma das janelas da casa voltadas ao pátio, que o disparo ganhou voz e tomou a palavra duas ou três léguas em volta.
Os passaritos, afinal, até tinham razão para tamanho alarido de penas pelo ar e guinchos de espanto e dor: à guarda da mais antiga macieira da quinta, esparramados no escárnio da terra, dormem tão-só vinte e quatro cadáveres de peso nulo, condenados pelo indubitável crime de terem asas e vida.