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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 12 de maio de 2006

SEM SEQUER TER LEVANTADO A PERNA

Noite alta em plena baixa. Becos e ruelas sem uma pinga de gente. Nem sequer um gato aos gritos sob a tortura inquisitorial do cio. Luz nenhuma ou quase. Ao pendurão de janelas e postigos, aqui e além, tristérrimas peças de roupa já encardida muito antes da nascença, procurando trescorar ao sol da noite. E ele, encurvado para a frente, como se tentasse desbravar caminho entre uma multidão de credores desvairados, numa aflição para mijar. Pois há-de ser aqui e já.
Homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família. Quem lhe diria, minutos antes, que aquele gesto de verter contra a parede o sufoco que arrastava, o levaria a destrambelhar de cabo a rabo toda a referida pacatez que até então o denunciava como exemplar, ou seja um daqueles raros cidadãos cujo molde de fabrico se terá perdido nas catacumbas do tempo? Que nem bola de neve a engordar montanha abaixo até ser avalancha e perdição e morte, assim os eventos se encadearam e transformaram na brutal realidade de que ora se faz notícia.
Ainda ele sacolejava o quinquagenário pendente, de alma remoçada pelo alívio, e eis que em plena cabeça se lhe abate uma inequívoca penicada de mijo velho, retrasado, sabe-se lá se deixado a fermentar de propósito para espessar a mistela. “Grandessíssima vaca”, berra ele, cambaleante e meio cego, ao ver e ouvir lá nas alturas a risota chasquinada da meretriz que o emboscara. Só que não seria a vaca mas o boi de cobrição a vir à rua e a pedir-lhe contas pelo insulto, enquanto às demais janelas afloravam mais e mais risotas e chistes e até mais penicos de mijo, recente ou antigo. E deu no que deu, bem se vê, com o bovino a dar com os cornos na calçada, para aprender a não se meter sem aviso com a sisudez de um homem pacato, mais ou menos malcheiroso. E quando por lá apareceu a polícia e o levou, algemado, entre pilhérias e empurrões de fardas novas e usadas, sem dele ouvir a mais pequena explicação, foi quase natural que um dos agentes, um ainda rapazola e tão sardento como ruivo e grandalhão, chegasse sem dentes à esquadra. E foi só uma cabeçada.
Na manhã seguinte, no tribunal, e só porque o juiz se permitiu o descuido de sorrir ao ler o desnovelo dos factos – segundo a versão transcrita no relatório da polícia –, e de manter o mesmo sorriso ao ditar, por fim, a prescrição penal de alguns meses de prisão remíveis a tanto por dia de multa e respectivas indemnizações aos ofendidos, de novo a pacatez arreganhou dentes e cuspiu em plenas ventas do meritíssimo. Como se calculará, foi a prisão bastante agravada, por desrespeito ao tribunal na pessoa daquele seu magistrado, e desde logo tornada efectiva. De nada lhe valeriam os recursos interpostos, nem os súplices apelos da família e dos amigos.
E já na prisão, quando o seu companheiro de cela, um tamanhuras tatuado desde o pescoço às unhas dos pés, o apanhou mais sonolento, de bruços, e tentou valer-se disso para lhe arrancar as cuecas, de imediato ele resolveu a questão com um pontapé nos testículos do entesoado atacante. Volvido o eco do urro, finaram-se as tatuagens desde as unhas dos pés ao pescoço em campa rasa e sem flores nem epitáfio. E ele viu-se transferido, sob medidas de alta segurança, para a ala dos mais perigosos, como perigoso homicida.
Eis o que pode acontecer a qualquer homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família: desencantado da vida ou cansado de a não viver, não resistiu muito tempo e enforcou-se na cela. Há quem diga, porém, em voz de pano rasgado, que ele não se enforcou, não senhor, mas se pendurou pelos tomates e assim veio a morrer, sem soltar sequer um ai, o que foi considerado notável e com toda a justiça se regista nos anais da história do sistema prisional.