SEM SEQUER TER LEVANTADO A PERNA
Noite alta em plena baixa. Becos e ruelas sem uma pinga de gente. Nem sequer um gato aos gritos sob a tortura inquisitorial do cio. Luz nenhuma ou quase. Ao pendurão de janelas e postigos, aqui e além, tristérrimas peças de roupa já encardida muito antes da nascença, procurando trescorar ao sol da noite. E ele, encurvado para a frente, como se tentasse desbravar caminho entre uma multidão de credores desvairados, numa aflição para mijar. Pois há-de ser aqui e já.
Homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família. Quem lhe diria, minutos antes, que aquele gesto de verter contra a parede o sufoco que arrastava, o levaria a destrambelhar de cabo a rabo toda a referida pacatez que até então o denunciava como exemplar, ou seja um daqueles raros cidadãos cujo molde de fabrico se terá perdido nas catacumbas do tempo? Que nem bola de neve a engordar montanha abaixo até ser avalancha e perdição e morte, assim os eventos se encadearam e transformaram na brutal realidade de que ora se faz notícia.
Ainda ele sacolejava o quinquagenário pendente, de alma remoçada pelo alívio, e eis que em plena cabeça se lhe abate uma inequívoca penicada de mijo velho, retrasado, sabe-se lá se deixado a fermentar de propósito para espessar a mistela. “Grandessíssima vaca”, berra ele, cambaleante e meio cego, ao ver e ouvir lá nas alturas a risota chasquinada da meretriz que o emboscara. Só que não seria a vaca mas o boi de cobrição a vir à rua e a pedir-lhe contas pelo insulto, enquanto às demais janelas afloravam mais e mais risotas e chistes e até mais penicos de mijo, recente ou antigo. E deu no que deu, bem se vê, com o bovino a dar com os cornos na calçada, para aprender a não se meter sem aviso com a sisudez de um homem pacato, mais ou menos malcheiroso. E quando por lá apareceu a polícia e o levou, algemado, entre pilhérias e empurrões de fardas novas e usadas, sem dele ouvir a mais pequena explicação, foi quase natural que um dos agentes, um ainda rapazola e tão sardento como ruivo e grandalhão, chegasse sem dentes à esquadra. E foi só uma cabeçada.
Na manhã seguinte, no tribunal, e só porque o juiz se permitiu o descuido de sorrir ao ler o desnovelo dos factos – segundo a versão transcrita no relatório da polícia –, e de manter o mesmo sorriso ao ditar, por fim, a prescrição penal de alguns meses de prisão remíveis a tanto por dia de multa e respectivas indemnizações aos ofendidos, de novo a pacatez arreganhou dentes e cuspiu em plenas ventas do meritíssimo. Como se calculará, foi a prisão bastante agravada, por desrespeito ao tribunal na pessoa daquele seu magistrado, e desde logo tornada efectiva. De nada lhe valeriam os recursos interpostos, nem os súplices apelos da família e dos amigos.
E já na prisão, quando o seu companheiro de cela, um tamanhuras tatuado desde o pescoço às unhas dos pés, o apanhou mais sonolento, de bruços, e tentou valer-se disso para lhe arrancar as cuecas, de imediato ele resolveu a questão com um pontapé nos testículos do entesoado atacante. Volvido o eco do urro, finaram-se as tatuagens desde as unhas dos pés ao pescoço em campa rasa e sem flores nem epitáfio. E ele viu-se transferido, sob medidas de alta segurança, para a ala dos mais perigosos, como perigoso homicida.
Eis o que pode acontecer a qualquer homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família: desencantado da vida ou cansado de a não viver, não resistiu muito tempo e enforcou-se na cela. Há quem diga, porém, em voz de pano rasgado, que ele não se enforcou, não senhor, mas se pendurou pelos tomates e assim veio a morrer, sem soltar sequer um ai, o que foi considerado notável e com toda a justiça se regista nos anais da história do sistema prisional.
Homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família. Quem lhe diria, minutos antes, que aquele gesto de verter contra a parede o sufoco que arrastava, o levaria a destrambelhar de cabo a rabo toda a referida pacatez que até então o denunciava como exemplar, ou seja um daqueles raros cidadãos cujo molde de fabrico se terá perdido nas catacumbas do tempo? Que nem bola de neve a engordar montanha abaixo até ser avalancha e perdição e morte, assim os eventos se encadearam e transformaram na brutal realidade de que ora se faz notícia.
Ainda ele sacolejava o quinquagenário pendente, de alma remoçada pelo alívio, e eis que em plena cabeça se lhe abate uma inequívoca penicada de mijo velho, retrasado, sabe-se lá se deixado a fermentar de propósito para espessar a mistela. “Grandessíssima vaca”, berra ele, cambaleante e meio cego, ao ver e ouvir lá nas alturas a risota chasquinada da meretriz que o emboscara. Só que não seria a vaca mas o boi de cobrição a vir à rua e a pedir-lhe contas pelo insulto, enquanto às demais janelas afloravam mais e mais risotas e chistes e até mais penicos de mijo, recente ou antigo. E deu no que deu, bem se vê, com o bovino a dar com os cornos na calçada, para aprender a não se meter sem aviso com a sisudez de um homem pacato, mais ou menos malcheiroso. E quando por lá apareceu a polícia e o levou, algemado, entre pilhérias e empurrões de fardas novas e usadas, sem dele ouvir a mais pequena explicação, foi quase natural que um dos agentes, um ainda rapazola e tão sardento como ruivo e grandalhão, chegasse sem dentes à esquadra. E foi só uma cabeçada.
Na manhã seguinte, no tribunal, e só porque o juiz se permitiu o descuido de sorrir ao ler o desnovelo dos factos – segundo a versão transcrita no relatório da polícia –, e de manter o mesmo sorriso ao ditar, por fim, a prescrição penal de alguns meses de prisão remíveis a tanto por dia de multa e respectivas indemnizações aos ofendidos, de novo a pacatez arreganhou dentes e cuspiu em plenas ventas do meritíssimo. Como se calculará, foi a prisão bastante agravada, por desrespeito ao tribunal na pessoa daquele seu magistrado, e desde logo tornada efectiva. De nada lhe valeriam os recursos interpostos, nem os súplices apelos da família e dos amigos.
E já na prisão, quando o seu companheiro de cela, um tamanhuras tatuado desde o pescoço às unhas dos pés, o apanhou mais sonolento, de bruços, e tentou valer-se disso para lhe arrancar as cuecas, de imediato ele resolveu a questão com um pontapé nos testículos do entesoado atacante. Volvido o eco do urro, finaram-se as tatuagens desde as unhas dos pés ao pescoço em campa rasa e sem flores nem epitáfio. E ele viu-se transferido, sob medidas de alta segurança, para a ala dos mais perigosos, como perigoso homicida.
Eis o que pode acontecer a qualquer homem pacato, cônscio de seus limites, honesto, trabalhador, pai de família: desencantado da vida ou cansado de a não viver, não resistiu muito tempo e enforcou-se na cela. Há quem diga, porém, em voz de pano rasgado, que ele não se enforcou, não senhor, mas se pendurou pelos tomates e assim veio a morrer, sem soltar sequer um ai, o que foi considerado notável e com toda a justiça se regista nos anais da história do sistema prisional.
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