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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

DO PERFUME DAS QUINZE ROSAS NUM RAMO E DE UM SÓ ESPINHO A PICAR

Espreitando de lá, da janela, na rua, ao nível do solo, deveria estar um frio de rebentar pedras onde pedras não houvesse. Via-se e lia-se com o malévolo protagonismo da geada, capaz de, de longe, arremedar um nevão. Só de longe e olhando de dentro para fora, todavia, porquanto lá, na relva, aquela alvura toda até dentes devia ter. Sair, com um frio assim, nem pensar. Era preciso esperar que o sol compusesse o ramo e na íntegra restituísse a verdura à vegetação rasteira, a mais próxima dos pés, não obstante estarem bem calçados e aos pulos, no frenesim da não anuência à gradual transmudação em penedos de gelo, já que esses, uma vez alojados nos contentores da expedição a lugar algum, tão cedo não regrediriam de tal estado, terrível em qualquer ponto do mundo, o de penedos de gelo em vez de pés.
"Telefona a dizer que estás de cama"—, chegara ela a sugerir, olhos e ideias ainda ofuscados pela luz da janela, que lhes inundava o quarto com fulgor crescente e parecia sugerir novas cores e novos reflexos no ondear dos cortinados, nas paredes, nos arabescos de sombra. Tudo a mancomunar-se na intenção de reformular a tendência do anunciado por ele, poupando-lhe, a ela, os olhos ao charco lacrimejante de mais uma despedida até um dia.
Determinada a conservá-lo consigo, fossem quais fossem os custos da peleja, ainda usou o truque de deixar uma perna, nua, longa, capciosa, fora da roupa, como se desígnios secretos não tivesse, exposta a quem reentrasse no quarto ao sair do chuveiro, trazendo apenas uma toalha atada à cinta e o cabelo e não só a fumegar. Logo após ter aproveitado o brasido da sugestão do demo nela instalado, ele saiu mesmo, lesto e indiferente ao rigor da geada vislumbrável pelas janelas. Mas aqueles assanhados minutos de retenção da saída tiveram, para ambos, maior ênfase que toda a epopeia nocturna acabada de ultrapassar em guerra aberta, sem regras nem precessão de pruridos. Foram quinze minutos exactos a arrepelar cabelos, a esgadanhar lençóis, a gritar sem gritaria aos ouvidos, a cavalgar e a arfar entre esgares e nervos, e a chegar aos céus em uivo uníssono, para amainar pouco depois, suspiro a suspiro, como a maré em retirada areal abaixo.
Quinze anos depois, ao depor-lhe um arranjo florido sobre o mármore da campa — são quinze rosas flamejantes, tintas de sangue —, ela revê na lembrança aquele quarto de hora desencadeado pela perna fora da roupa e descura um quase sorriso de felicidade, embora triste de mais para que a luz o consinta. A clandestinidade do amor, então e sempre, insinuava nesse amor a ilusão de coisa eterna, apesar de cingido a um ou dois encontros semanais, no princípio, depois a uma ou duas vezes por mês, e, quando amadurecido, a uma ou duas fugas por ano. Havia quem dissesse que o fervor dos primeiros dias se mantinha em ambos com alma igual graças à rarefacção gradual daqueles encontros. E foi mesmo esse o penúltimo ensejo que tiveram de estar juntos. O último, ainda na clandestinidade, foi no funeral dele, dois dias após a noitada que, como se pôde ver, haveria de terminar na avidez daqueles quinze minutos de total arrebatamento, afinal fatídico. Nem chegaria ao gesto de tomar assento no carro, tombando em pleno tapete de geada, com o olhar tão vidrado como tudo em volta.
Hoje, ela, uma bela mulher de quarenta e cinco anos solteiros. Ele, um nome gravado em pedra e, em cada quinze dias, desde quinze anos, um lindo ramalhete de quinze rosas, rubras de sangue, ali depositado por ninguém.