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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

DESCIDA AO FUNDO DO POÇO COMO SE NELE HOUVESSE MODO DE MATAR A SEDE

Era um homem triste. Sempre assim fora. E quando alguém ousava a simpatia de lhe perguntar o que o entristecia tanto, ele dizia que não, longe disso, que não estava triste. Que seria apenas sensação errónea experimentada por quem o não conhecesse a preceito, por dentro, no perpassar sem surpresas de cada dia. E acontece que o conhecimento em profundidade de alguém — acrescentava ele a quem teimasse nos desígnios de lhe perscrutar e devassar a janela fisionómica — envolve tão melindrosas questões, uma construção tão delicada, um tal rigor no percurso de recíproca auscultação, que só o amor terá capacidade e sapiência cirúrgica para penetrar o insondável, decifrar a semiótica de protecção, fingir ignorância em relação a quanto ultrapasse a raia descendente do desabono. Aí, velhaco, sem maldade nem cedências à futilidade acomodatícia, tinha por costume perguntar:— “Gostaria de me conhecer melhor?”—, e sorria, embora de modo triste, para logo a seguir contar uma história.

Com uma flor na mão e outra nos olhos, quis dar-lhe os parabéns no dia em que ela faria anos. A flor tremelicada pelos dedos, sem deixar de ser de jardim, cultivara-a ele, com paixão, desde há muito. Quanto à outra, a que só de olhos nos olhos se poderia entrever, era silvestre, espontânea, colhida de passagem ali perto. E perto estaria tal flor das palavras a dizer e que nunca seriam ditas, que nunca se adiantariam aos balbucios de forma a fazer-se ouvir. Ficaram retidas no aperto da garganta, que logo as esvaneceu e sumiu sem sinais que não fossem a secura amarguenta da boca, o espetar das unhas nas palmas das mãos, a patética murchidão da flor campesina, talvez regada pela salsugem própria dos olhos.
Só que o silêncio em sufoco e o braseiro das faces dizem coisas e em voz alta, acusam-se e acusam sem alardes de valentia. Não será pois de estranhar que o discurso de ninguém a ninguém tenha granjeado atenção e consequentes de peso: riso, chacota, ou mesmo escárnio, e ainda duas ou três palavras de agradecimento chistoso pela flor que as mãos tremelicantes carregavam, e não pela outra, a que só dentro dos olhos se mantivera, apesar de murcha.

Que tristezas não pagam dívidas, diz o milenar rifão aos remediados, pretendendo guardá-los da vanidade choramingueira, nanja aos que já nem lágrimas possuam, de tão débeis. Mas isso de se ser triste não é manifesto de se ser choramingas, ou de se praticar mendicância de benquerenças a retalho, ou de se lamuriar em versos de pé-quebrado e tom menor todo o mistério da vida. Ser-se triste é ter a consciência actuante, afinal, tendo em atenção o que por aí vai no mundo. Ser-se triste é não dormir acordado, enquanto as trombetas apocalípticas já se fazem ressoar através das fragas.
Sem jamais ter deixado de ser um homem triste, conseguia viver em paz consigo e em guerra aberta contra a restante humanidade, como se nela se empoleirassem (e empoleiravam) os passarocos de rapina com licença de matar renovável a cada refeição. E ser triste é não ter quaisquer motivos tangíveis para que a alegria sobreviva, porquanto doem menos as rugas de moldar esgares de dor, que as de arremedar alguma felicidade, sem demasias ou em plenitude.
Como única maneira de superar a massa bruta da melancolia sobre o sentido a impor ao andamento, contava histórias de sua invenção, ou por si protagonizadas, e decerto justificativas da inclinação da fronte para as pedras, dos olhos distanciados do lugar onde, do esconderijo das mãos nos bolsos como fuga à gesticulação dos solilóquios.

Teria talvez catorze anos. O que ele não tinha era sapatos. Nem umas míseras alpercatas de lona, ainda com direito ao benevolente epíteto de calçado. Decorria então a infinitude das chamadas férias grandes, e até as sapatilhas obrigatórias na ginástica do liceu esperavam a vez no caderno de urgências a comprar, se se comprassem. E no relativo à condenação de andar descalço, era até vulgar numa época de trevas longínquas do ensejo de se verem dissipadas. Espinhos cravados nos pés? Topadas azarentas dos dedos nalgum calhau vagabundo? Seria fastidiosa a enumeração.
O pior de tudo era haver reunião de cachopos, em casa de um menos sujeito à penúria da maioria e em dia de aniversário. Todos os que lá acorressem, no entanto, estariam calçados. Ele é que não.
A maldição do plástico começara a imperar e a substituir tudo o que fosse metal, madeira, trapo, cabedal. Nada escaparia ao invasor, cujo ascendente de maior notoriedade é o petróleo, nem mais. E também a mãe (quase nos quarenta e a calçar tanto como ele) aderira ao novo produto e comprara um par de chinelos baratuchos, paupérrimos, de usar uma vez por outra e sempre dentro de casa.
A risalhada colectiva ainda hoje, cinquenta anos depois, lhe atroa os ouvidos e lhe enrubesce os lóbulos, tão profundo foi o lanho. Até ele se riu de si próprio — que remédio!—, quando se viu de chinelitos de plástico, e de mulher, diante daquela multidão ululante. Nem chegou a entrar na festa. E para encerrar o desfile, levou tareia da grossa por ter deixado para trás, no atabalhoamento da vermelhidão em marcha acelerada, um dos chinelos. O direito, salvo erro.