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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

DIÁLOGO AO SOL EM TARDE HERMÉTICA POR MERCÊ DE SANGUE SERVIDO A FRIO

A cobra atravessou a estrada com dificuldade. Não porque a torreira do asfalto lhe desagradasse, mas porque a lisura do mesmo a obrigava a um esforço suplementar no desenho do ziguezague indispensável à progressão. Se um qualquer carro a qualquer momento se lembrasse de circular por ali, ter-lhe-ia cortado a cauda, quebrado a espinha, ou até esmigalhado a cabeça. Por sorte dela, amante e praticante da vida como todo o ser vivo sem culpa no acto de que nasceu, não abundam nas imediações grandes motivos a atrair viandantes, dependentes do artifício das válvulas sincronizadas ou apeados. Ou então abundarão outros atractivos de outra ordem, aos quais acorrem aqueles em cuja bagagem se carregam instrumentos mensuradores, livros, binóculos, mapas, bússolas, lupas, cordas, facas, escopros, martelos, peneiras, ou seja apenas a identificável miscelânea de artefactos relacionados com a explicação da morte em proveito da vida. Em qualquer ermo, ainda que nunca pisado pelas posteriores de quem quer que seja em tempo algum, sempre hão-de impor-se vestígios da insignificância humana ante o olvido da preguiça perguntadeira, para a consabida minoria de tenazes escavadores no sacrifício de fins-de-semana e férias, ou, para a esclarecedora maioria de desinteressados congénitos, não mais que cacos a justificar orçamentos de engorda de improfícuos escavadores em gozo de férias e aos fins-de-semana.
Ainda há quem só de as pressupor as abomine, as cobras, e as persiga e apedreje. E também há quem as esconjure e mantenha envoltas em histórias nefastas, crenças pueris de gente adulta, patranhas de fazer dó à estultícia sem os mínimos indícios de exigência correctora. E há quem a elas recorra como material de exorcismos, bruxedos e outras pantominices ressuscitadas na cegueira sempre em marcha contra a serena luminosidade do progresso. E há os estudiosos, aqueles a cuja vigilância, ajustada sobre a máquina toda poderosa das maquinações imobiliárias e congéneres ou complementares, se deve a preservação das espécies, desde sempre ameaçadas pela animalidade do homem, o arrendatário oficial do planeta. Alguém sussurrou só por enquanto, aí umas décadas mais, não muitas?
“Pelos quase dois metros de comprimento e pela coloração, eu talvez me incline para a malpolon monspessulanus”—, interpõe um dos dois emboscados sobre o trilho mal perceptível entre feno e cardos, que a cobra, alheia a perseguições, não se preocupou em disfarçar, fugindo por fugir. Como sempre se passou, aliás, desde os confins genéticos, a que a lenda, malevolente, deitou mão e tem vendido como lhe apraz, a preços de ocasião, ou seja consoante quem, como e quando.
Em volta, monótona e ressequida, a planura possível até às serranias acinzentadas pela distância, com esta ou aquela árvore, um ou outro arbusto a que a poeira surripiou o nome, alguns penedos amontoados à revelia de qualquer criador atento à função, tudo ao abandono de si mesmo, se nem o refrigério da sombra, quase nulo, se vê procurado e aproveitado perante a inclemência da canícula. É tempo dela —, diria a erudição das cãs de maior longevidade, se consultada.
“É de crer que haja por aí ratos para lhe dar sustento”―, conjectura o outro, de olhos ainda amarrados ao tronco esburacado por onde ela, a cobra-rateira, incólume e indiferente às latinices, quase majestática na pouca pressa em esconder-se, se fez sumir.
“Nestes dias de calor, deve ser compensatório ter o sangue frio como elas”—, graceja o primeiro, enquanto sem convicção enxuga o suor do pescoço a um lenço que urge torcer, de tão encharcado.
“Para ter já este tamanho, presumo que tenha alguns anos”—, arrisca o parceiro, o dos olhos ainda concentrados no buraco onde a bicha se pôs ao fresco, contrária ao labor científico ou profano que a tome por protagonista e lhe incomode a sesta.
“O que não pode é atravessar a estrada muitas vezes, se quiser durar mais uns tantos”—, torna o do arrojo latino, como se lhe cumprisse a missão de rematar por hoje a conversa.
Quando chegaram ao jipe, viram outra cobra enrolada sobre a tampa do motor, a usufruir da quentura de lá proveniente e a avisar de que, para quem tem sangue frio, nem todo o calor do mundo é bastante à congratulante necessidade de o saber disponível, sabendo-o também aproveitável por inteiro, sem contenção nem lamúrias.