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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 16 de junho de 2009

UTOPIA EM DOSES MORNAS PARA OBTENÇÃO DE EFEITOS SENSORIAIS SEM TEMOR

Era uma vez um homem que não era. Só que de tão insólita condição nunca ele alguma vez se apercebera, vivendo pois convencido de que era mesmo. Só ele se saberia a si próprio. Ninguém mais. Só ele teria a noção perfeita chame-se-lhe assim de quem nele era morador, ou tanto julgava ser. E ninguém o podia prevenir contra a incongruência, já que ninguém dela dava conta. Ninguém lhe decalcava os passos, ou chamava e cumprimentava, ou apenas dele espreitava o andamento, se andasse, a corrida, se corresse, os gestos, se gesticulasse. Dir-se-ia uma espécie de fantasma aquém de quem primeiro os inventou e pôs a espanejar por aí, na treva de quantos cérebros enfezados lhes dêem guarida e nutrimento, assegurando-se o sustento como contrapartida e na proporção exacta do dispêndio. Um fantasma, porém, incapaz de atemorizar quem quer que fosse, tendo em atenção que da existência dele ninguém sabia e só ele se entretinha ao pensar em dar-lhe corpo e acção, em imiscuir-se no meio e em tudo tomar parte, porque parte interessada, coadjuvante, voluntariosa.
Não tinha com quem repartir a alegria de se imaginar com vida, de se admitir igual entre iguais, de se questionar acerca da razão de ser dos contrastes observáveis no mundo. E de até experimentar sensações e sentimentos ou correlativos em amálgama de inviável definição, bem se vê, pela elementar evidência de tudo nele não ir além de invenção, ficção, fingimento, faz de conta. Tudo começava e acabava e se sumia sem rasto, de poeira nem um grão, nesse patético pormenor de só ele interpretar como existência interventiva aquele estranhíssimo estado de autoconvencimento. Ele era tão-só alguém que não era e que nada seria nunca, além de tinta e papel, além de unhas remordidas até aos antípodas do pavor à solidão por companhia.
Talvez nem ele soubesse muito bem quem lhe concedera o simulacro de vida latente de que se arrogava. Talvez ele se bastasse com apenas um de dois progenitores obrigatórios, enquanto casal reprodutor, em qualquer concepção. Talvez ele não fosse mais que o resultado de um pingo de sémen vadio, no caderno de notas do autor, corroborando a vulgaridade dos que envesguem a escrita, não como exercício mental para pessoal usufruto, mas mera masturbação. E talvez, por tal razão, ele se furtasse a encarar-se no espelho como condenado à morte, por acumulação de esboços riscados, rasurados, rasgados, amarrotados e despejados para um cesto de papéis a abarrotar.
Ainda se o escritor se aventurasse ao naufrágio entre os vagalhões de sucção das editoras, é de crer que o objecto de sua criação, o ente que o era sem ser, lograsse salvar-se a nado e viesse a despontar depois, a título póstumo, nas evocações condescendentes de seu criador. Seria ele, apesar de invisível e mudo, um baluarte a impor na consolidação da imortalidade de quem dele foi servo e senhor, de quem nem nome lhe deu, de quem nele ousou retratar-se como cavaleiro da corte sem que antes houvesse aprendido a arte de cavalgar a preceito, ou a arte de bem cavalgar toda a sela e mesmo em pêlo.
Quando algum dia alguém lançar ombros à empreitada de escrever a tese fundamental, o livro onde o homem que não era passe a ser para que o mundo dele saiba e o reconheça sem lentes, terá que ter tento e atentar em tudo quem tal empresa arrostar. Não bastará pôr açaimes nos cachorros que ladrem à caravana. Esta lá grita o rifão —, há-de prosseguir a marcha em frente, indiferente à certeza de que a estrada por onde avança, carreiro de saibro ou de macio betume, acabará em abismo não maior que um metro e vinte.