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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 20 de junho de 2009

DE CÃES E GATOS NÃO SE DIGA QUE NÃO SÃO DIGNOS DE SEREM ESTRELAS

Era tão vagaroso a falar, que cada palavra de cada frase pronunciada lhe pedia ponto final. E os gestos e trejeitos complementares de cada arremesso verbal eram tão arrastados, que lembravam um bonifrate filmado em câmara lenta. Os amigos e conhecidos que o avistavam à distância, escapando-se ao castigo de dele ouvir a récita das maleitas em catálogo (temática única em agenda), logo invertiam a marcha ou se fingiam com tanta pressa, que nem a mão lhe estendiam no vulgar cumprimento entre os navegantes da noite. Limitavam-se a saudá-lo mal o olhando, sem reter os passos, levando os dedos ao sítio onde é useiro estar a pala do boné inexistente. Por isso, nem era de admirar que fosse um homem muito só, de cenho arrepiado como notícias de morte à laia de despertador matinal, e um olhar aturdido no formato exclusivo de náufragos sem terra à vista.
Celibatário por condenação (mulher nenhuma na hora casamenteira viria a ser capaz de por duas vezes lhe prestar atenção), viveu com os pais enquanto eles viveram e, desde que em simultâneo lhes foi dado partir a caminho do magma original, repartiu os dias e o alimento ou até a cama com quatro cachorros e outros tantos gatos, todos de raça tão indefinida como a dele. E havia até quem dissesse (sempre há-de haver quem use tais rudimentos como lenha) que uns e outros, gatos e cães, se pareciam com o dono na maneira compassada de exprimir as opiniões, requerendo ponto final após cada latido ou miado, um a um, e hasteando a cauda ou abanando-a em poses contidas, como se o filme ameaçasse quebrar a todo o instante. E ladravam ou miavam em uníssono, em voz baixa, sem ensaio, poupando as cordas vocais e tentando sobretudo não poluir a ambiência familiar, tão bem amada por todos, felinos, canídeos e gente.
Antigo industrial de tipografia, não guardava muito nítidas saudades desse tempo operário, do matraquear da maquinaria em contínuo, do cheiro intenso das tintas, da penumbra dita natural em oficinas onde o sol se fica à porta, da sujidade em paredes que ninguém diria terem cor branca lá por debaixo, do flagelo de ratazanas tamanhudas como láparos tamanhudos, das reclamações de clientes menos satisfeitos e ainda assim apressados, da morosidade ronceira dos funcionários na obediência a determinações por ele expressas, patrão e obreiro como eles, afinal, se sempre o primeiro a entrar e o último a despir a bata e a transladar as pernas bambas até casa. Saudades, na verdade, nunca lhe impuseram qualquer maior desbaste de neurónios.
Quando das campinas aos cerros em volta se fez vaguear a notícia do embarque derradeiro daquele quase eremita — quiçá um misantropo de geração espontânea sem substrato mentor, diziam alguns de mais lábia e menos palco onde se dar corda ao génio —, teria sido de alívio universalizado, deveras, a impressão primeira a instalar-se e a ler-se, de imediato, em cada rosto, cada janela, cada rua. Aliás, confirmando a pesporrência dominante que nenhuma hipocrisia disfarçará, logo a morte daquele homem, um solipso, granjeou direito a lugar cativo no anedotário e transformou em zombaria alarve aquilo que deveria ser apenas comedimento e respeito.
Mas nem um entre esses alarves, um só que fosse, foi capaz de resistir e suster as lágrimas ao ver quatro cães e quatro gatos, integrados no cortejo fúnebre, a acompanhar e a despedir-se do dono. Não se sabe se, por sua vez, choravam muito ou pouco. Não traziam lenços. E mal o funeral acabou, desapareceram. Nunca mais deles veio a saber-se, se já morreram ou não, e se antes de morrer já miariam e ladrariam mais depressa do que o dono ao confabular, a sós, sobre as moléstias enunciadas no catálogo respectivo.