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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 10 de julho de 2009

À UMA DA MANHÃ E À LUZ DO LUAR TAMBÉM SE MATA E SE MORRE

Puxou a culatra e acompanhou-lhe o retorno sem a largar, e logo sem quase denúncia no estalido obrigatório, de modo lento. Com lentidão semelhante, portanto, terá entrado a bala na câmara. Bem mais lenta que no lapso instantâneo da percussão a acontecer, segundo o que se perspectiva como indeclinável, qual convite para uma boda resumida a dois convivas de costas voltadas. Ignorar tão explícito desafio daria mais nas vistas que aparecer e corresponder à provocação. Um duelo segundo o modelo de há cem anos é prato cujo sabor se depreenderá sem provar, mas de que ninguém fará a menor ideia, afinal, se não se submeter ao segredo do chumbo como tempero.
”Herói, precisa-se”—, ouvira ele a si mesmo, em voz roída, na ocasião em que aceitara o repto e de modo breve combinara as formalidades mínimas, bem como a data, a hora e o local. O local seria o bosque de cedros, por ambos conhecido desde a meninice, se ali tinham jogado e brincado, corrido e saltado, e até fingido duelos, quem diria. Agora, adultos, a brincadeira era a sério, a matar e a morrer. E combinaram que tudo aconteceria sem testemunhas, padrinhos, árbitros. Na data ajustada, que é já amanhã, daqui a poucas horas, ao bater da uma da madrugada, aproveitando o luar e a largueza desta clareira, situados a vinte passos um do outro, ou dez de cada qual para cada lado, cada um deles a usar o seu próprio revólver e uma única bala já metida na câmara. E só aí rodopiariam e disparariam ao soar, após a enfadonha cantilena das sinetas complementares, a badalada solitária, porque é uma da manhã, no sino maior. Nem mais.
“Cobarde, oferece-se”—, remorde ele agora, sem se ouvir, emboscado entre os arbustos e moitas que acompanham este caminho terroso, e único, ao dispor de quaisquer passos apontados à clareira, ainda que se saiba dos enormes riscos (as autoridades têm alertado) de acorrer a sítios destes a tais horas. Poucos, muito poucos minutos passam da meia-noite, ainda agora se eternizaram aquelas doze badaladas, e ele já aqui está e desde há várias horas, mas escondido. Alheio à sagrada regra de cumprir as regras, gerais ou específicas, prefere contornar o perigo de levar um tiro e de ver a vida não ir além de hoje. Não passa de uma treta, essa coisa da honra, quando o que esteja em causa seja a perdurabilidade desejada para o coiro, por certo não preparado em caldeirões fabriqueiros que até à infinitude dos tempos lhe assegurem a resistência à perfuração por bala disparada a vinte passos. E a mais garantida defesa é o ataque, por antecipação das jogadas ao encontro do ímpeto adversário, bem se vê. Então não é muito mais fulminante e certeira uma boa carabina, com os cotovelos apoiados na terra, que uma pistola nervosa e apontada à pressa no meio da clareira à luz do luar? E se viessem nuvens encarvoar a não muita luz?
Sonoroso e grave, alguns segundos depois da melopeia repetitiva das sinetas, fez-se ouvir, por uma só vez, o sino maior do campanário, ao consagrar a passagem da primeira hora de mais um dia a cumprir-se e a eliminar da contabilidade dos dias por viver ainda. Mal dos muitos que não escutem a ressonância da badalada por terem já apurado, até à derradeira parcela, o resultado da soma do tempo que lhes cabia, e sem precisão de provas a ver se a conta está certa.
“O cobardolas não apareceu”—, diz-se o herói emboscado entre sebes e restolho, sobre a azinhaga térrea onde esperava alvejar e eliminar o outro herói desta história, de cujas façanhas muito pouco se avançou, por nítida preferência do autor pelo seu antagonista, que, cansado de esperar, adormeceu onde estava, abraçado ao espingardão.
Adivinhasse ele que a escassos metros, no outro lado da azinhaga, de igual maneira oculto pelo matagal, e também este a dormir agarrado a uma carabina, se enroscava a outra peça do binómio indispensável ao duelo em perspectiva, como há cem anos ou mais.
Desejemos que não ressonem, um e outro, ou acordar-se-ão.