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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 14 de julho de 2009

TODO O LUGAR FICARÁ LONGE DE MAIS PARA QUEM ESPERE QUEM NÃO VEM

O homem, alto, magro, elegante, como sempre convém acontecer em todas as histórias passíveis de serem um dia guião de filme a realizar em estúdio sem telhas e a pagar do próprio bolso e de mão estendida às promessas presumíveis no saco de esmolas dos subsídios oficiais, imaginou-se de chapéu acinzentado e gabardina de cor próxima, um jornal debaixo do braço e um livro já lido numa das algibeiras. Olhou em toda a volta, como se fizesse o reconhecimento do lugar à coca de qualquer ameaça não enunciada no programa. Pigarreou com ênfase para a concha da mão disponível e aproveitou o gesto para consultar as horas no pulso e compará-las às interpostas no relógio da estação ferroviária, na outra berma da avenida, para então tomar assento na muralha ribeirinha, mas não sem antes varrer com o lenço o excesso de solicitude das pombas e das gaivotas anfitriãs, donas do rio quase mar e das varandas e beirais circunvizinhos.
Delas se ouvia, destas últimas, a falácia em decurso sobre as águas, à tardinha, a hora habitual de deitar contas à vida e de avançar planos para a aventura do dia seguinte. Imaginou-se também, o homem alto e magro como já se revelou ser conveniente, à espera de alguém que não prometera vir, e daí a expressão intranquila, impaciente, olhos e ouvidos e demais sentidos apontados para lá do horizonte, a linha de onde deveria despontar a boa notícia, capaz de quebrar a expectativa e devolver a tranquilidade a quem aguarda não se sabe quem.
Continuará na algibeira da gabardina o livro já lido, e amarrotado ao jeito do braço o jornal a ler. A atenção maior, todavia, não se agarra a nenhum desses subterfúgios de fingir devoção à leitura, aligeirada ou empenhada, jornal ou livro. Conserva-se lá, na bruma que a distância adensa para castigo dos olhos que a perscrutem. A própria tagarelice das gaivotas não consegue perturbar-lhe a fixação na irrealidade que a lonjura teatraliza. Alguém ou algo, talvez uma vela, talvez um navio de chaminés a fumegar, há-de aparecer e trazer-lhe quem ali o tem e mantém, muito bem sentado na muralha ribeirinha.
A noite nem precisa, no entanto, de ser imaginada para que caia, seja qual for o grau de veracidade que a inventiva consiga pôr em palco e representar como sua, vivendo-a como se a vivesse. Nem a noite tem contas a fazer ou planos a arquitectar para o dia de amanhã como as gaivotas. Cai sem disfarce, sem comiseração, sem nada se cuidar com quem tenha ou não tenha onde dormir. E após a travessia da planície estrelada, não havendo nuvens a toldar-lhe o afago, há muito quem a percorra sem se deslocar do sítio onde ela o tenha descoberto. Assim aconteceu àquele homem elegante, magro, alto, que agora se imagina de gabardina cinzenta e chapéu em tom semelhante, com um livro já lido na algibeira e um jornal a ler sustentado pelo braço: ali continua ele, sentado na muralha da margem do rio quase mar, de olhos fixos no horizonte que a penumbra, maldosa, finge longínquo.
Quando o aparato médico e de enfermagem do hospital psiquiátrico, entretanto informado por alguém, veio recuperar o doente de pijama e chinelos que naquele ponto, uma muralha de pedra deitada sobre o negrume do lamaçal na margem do rio, conseguira passar uma noite inteira, encontrou-o a chorar. Não estaria a sofrer os efeitos daquelas horas todas sem assistência, sem medicação, e suportadas ao relento, ao frio, à fome, à sede?
A razão de ser daquele pranto era só uma: o alguém que ele esperava vislumbrar no horizonte não chegara ainda.