http://photos1.blogger.com/blogger/1866/2796/1600/eliseu%20vicente.jpg
A minha foto
Nome:
Localização: Coimbra, Portugal

CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 7 de julho de 2009

ASCENSÃO E DECADÊNCIA DE ALGUÉM QUE A CAIR SUBIU AO PEDESTAL DA POEIRA

De repente, como se fosse algo em tudo natural, arreou-lhe uma bela paulada no andar de cima, que o mesmo é dizer no baú da presunção de ser valente, e deixou-o sem ideias até ao dia seguinte. E quando as primeiras centelhas de luz enfim se lhe acoitaram entre as pestanas e lhe impuseram a dúvida de estar vivo ou não, tanto o cacete agressor como o dono do gesto, viandantes sem rosto nem sombra gravada no pó, por que descaminhos é que já não se perderiam na querença de ir embora, e depressa, para não voltar nunca mais. Mas quem é que lhe encomendara a sobranceria de se meter com quem não?
Derramado no chão, conseguiu ser durante horas a suprema imagem do miserabilismo à mercê de tudo, se até o mais desgraçado cachorro sem direito a nome lhe mijaria para cima. Da boca, entreaberta sob a aflição de entregar ar aos pulmões, escorria uma baba espessa, mista de escarro e de terra e com a mesma cor dos dentes. E custou-lhe um ror de minutos o esforço de reduzir a silhueta na estrada e recuperar o privilégio da verticalidade. Um fio de sangue seco, a ondear sobre a têmpora esquerda e a ser moldura da orelha respectiva, se tivesse um espelho ali a jeito, de pronto lhe daria notícia da rijura da bordoada e até da gravidade do lanho. Quem de tal o advertiu, para lá da dor sita no casco, foi a ponta do dedo indicador, esborratada por um estranho fluído peganhento e vermelhusco, no retorno da pesquisa obrigatória ao cocuruto. E estranheza bem maior sentiria ele, se não lhe acudisse à memória a causa de tudo aquilo, desde a caricatura do achado de si próprio, derrubado entre bostas e caganitas de quantos rebanhos por aqui passarão, até estas contorções em busca do restabelecimento de um equilíbrio problemático. Mas acudiu, e ele lembrou-se. E muito o beneficiará não esquecer tal episódio nos anos a consumir ainda. Não sendo de festejar, não é uma data qualquer aquela em que se aguente uma brutal mocada na cabeça e se fique com cabeça para contar, sem engano, quantas são as fases lunares, por exemplo.
Lá nas alturas, como arautos encarregados do anúncio de boas e más novas à ralé doida por elas, outras silhuetas conhecidas se devotam à função da contemplação predadora: milhanos e peneireiros e demais senhores do céu, saqueadores de capoeiras e verdugos de lagartixas e familiares nas horas vagas. A eles também cumpre a tarefa de limpar o solo e mantê-lo livre de quantas moléstias resultem da podridão de cadáveres. E dessa vocação, decerto, a aproximação de um local onde durante horas se viu um corpo de borco, como que à espera de quem lhe desse destino em conformidade. No presente caso, porém, parece que o animal ainda mexe e procura até equilibrar-se nas posteriores, obstinado, tremelicante, mas vencedor da peleja.
Ei-lo, outra vez de pé, em corpo inteiro e tamanho natural, o símbolo maior do destemor e da pujança nas muitas léguas em redor. Há por aí alguém capaz de negá-lo? Haverá quem se abalance ao suicídio de desafiar e defrontar o campeão? Bem, como aqueles dois forasteiros, pau atacante e mão motriz, não prometeram voltar, e como ninguém lá se viu nas redondezas a dar fé daquele trambolhão no vácuo, nada haverá a corroer o real papiro das crónicas já contadas e a contar aos vindouros. O importante, agora, é bem asinha encontrar um rio, uma fonte, um poço, um qualquer charco de rãs e lodo, seja o que for cuja água remansosa se lhe exponha como espelho, primeiro, e depois lhe lave e enxagúe o brio, não esquecendo a delação do brinco de sangue pendente da orelha esquerda.
“Parece que te cortaste ao fazer a barba”—, diz-lhe um, com uma boa ração de malícia na voz dos olhos e na outra, ao vê-lo esgueirar-se de monco mais rasteiro que os pedregulhos de granito da calçada e sem cumprimentar ninguém, danadinho por chegar a casa e por se furtar ao ácido oral e visual de quantos o pretenderiam interpelar.
“Tens sangue no pescoço”—, acrescentou um outro, tão verruminoso como o anterior no riso do olhar e na ênfase emprestada à pronúncia das palavras, uma por uma, de muro com vidros por cima.
“O melhor é desinfectar isso”—, remata um terceiro, a arrastar a fala como se rosnasse e arreganhasse os dentes acobardados a quem já lá vai, a quem já se esfumou na escuridão de um beco onde persiste em morar a sós consigo, e cada vez mais, por opção.
Pode um gigante cair e ser menor que o menor dos anões que dele se riu. Ao nível do chão, contudo, nunca ele será um anão, mas apenas e tão-só um gigante que caiu.