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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

MELODRAMA EM UM ACTO PARA QUE O ACTO ÚNICO SUBA À CENA

O actor pigarreou, ainda na terra de ninguém dos bastidores, ao verificar que a voz se lhe mostrava insegura. Estas picadas na garganta, tendo-se tornado mais e mais assíduas desde há semanas, desgovernavam-lhe até aos soluços a contabilidade anímica e em destrambelho total lhe ensarilhavam os gestos, a expressão dos olhos, a dicção. Porque a simples hipótese de uma consulta médica pô-lo-ia de cócoras à mercê do espelho, no camarim, como se o diagnóstico lhe doesse menos em tal despropósito, que enquanto de pé ou sentado. O pai, também actor, morrera de quê? E a mãe, cujo brilho de estrela ímpar, naquele mesmo palco e em tantos outros, nunca se dissipara por completo e ainda hoje, com várias décadas de permeio, o ofuscaria por comparação da mais serôdia plateia, que barca a levara rio abaixo?
“Faltam cinco minutos”–, grita-lhe o contra-regra, do lado de fora da porta, sempre em marcha acelerada atrás do tempo a não desperdiçar por ninguém, nem um segundo, a fim de que o horário programado se fixe na mente de cada qual e a rigor se faça cumprir: actores, encenador, cenógrafo, carpinteiros, luminotécnico, sonoplasta, figurinista, cabeleireiro.
“Em cinco minutos se nasce e se morre”–, admite o actor, em voz média, de mãos no pescoço que massaja, tentando ler-lhe qualquer anúncio de ameaça afixado lá por dentro, talvez um gânglio, qual passageiro clandestino a dar-se ao luxo de uma fatal passeata pelo convés.
Protagonista na peça da própria vida, perto e longe da ribalta, ser-lhe-ia muito menos custoso protagonizar e triunfar sobre as matreirices do tablado. Qual Sófocles, qual Corneille, qual Ibsen, qual Brecht? Mas qual medo em relação à gaguez ou à oclusão da memória? Então não contam tantos anos a pintar e repintar rugas falsas, sem disfarce algum, porém, das que a realidade, à unha, vem gravando?
Logo depois deste pano, ainda em baixo, um mundo ávido de o esfarrapar ou aplaudir com adoração. Para cá dele, quando escancarado como se se despissem os actores até ao nojo das vísceras, a ficção explicada por palavras alheias, o artifício de sensações e sentimentos de comer na hora, o fingimento real da irrealidade a fingir, e a maquilhagem, como carapaça ante o pânico, sendo complemento da máscara da própria pele.
Não se descure, entretanto, o fulgor das luzes, que o artista é filho de gente também, e quem sabe se, de repente, não lhe dá para se acomodar à penumbra como simulacro de mortalha, óbvia que seja de mais.
Aos seus lugares, atenção. Todos preparados. Quem não é do palco, fora do palco. Eis as pancadas da ordem, que Molière e continuadores fizeram impor, seis ao todo: três mais rápidas, três mais lentas. Vai subir o pano…
O pano não sobe.
“Cumpre-nos informar o excelentíssimo público presente de que fomos obrigados a cancelar o espectáculo desta noite por morte súbita, há breves minutos, do actor que protagonizaria a peça prevista para hoje. Devolver-se-á o custo de ingresso a quem apresentar à saída os respectivos bilhetes”.