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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 10 de outubro de 2006

DO NÓ EM QUE O AMOR SE BRANQUEIA E VENDE A METRO OU A PESO

Num país longínquo do tempo que hoje se conta, nasceu, um dia, uma criança. Tão-só um menino com a única sina de ser em tudo igual a qualquer outro menino nascido em qualquer tempo ou lugar. De olhos pretos e pele amorenada, tal e qual a mãe e o pai e toda a gente vizinha, em nada se diferenciava, é verdade, muito embora sempre houvesse os desconfiados a roer dentes com dentes. Bichanavam acerca de já ser velho e gasto em demasia o pai do cachopo, um carpinteiro, para que tivesse sido ele a emprenhar a mãe do dito. E que o filho dele não seria bem filho dele, mas produto de algum vagabundo a perambular por aqueles sítios e que lá em casa, ou no curral do gado, alguma vez pernoitasse e não apenas, sopesando o que à vista se expunha e tornara objecto de análise.
Também houve quem propusesse um milagre como solução de tão melindroso enigma. E toda a gente, das cercanias e de longes terras, das montanhas e das planícies, da borda-mar e do deserto, deu em acorrer até àquele paupérrimo casinhoto, onde habitava e laborava o oficial de carpintaria. Os dias iam difíceis e era em estado de indescritível necessidade que com ele viviam a mulher, bem mais nova e bem aquém de suscitar bocejos de cansaço e rejeição, e aquele filho tardio. Era de tal feição a nudez do seu habitáculo, que se sentiram compelidos a receber toda aquela gente no estábulo, entretanto repartido por uma vaca e um burro, os únicos animais que a família, de tão pobre, então podia manter.
E vieram pastores, operários, grandes e pequenos lavradores, servos sem quase sola dos pés, mulheres da vida e das outras profissões todas, artesãos, soldadesca e marinheiros, gatunos e assassinos. Veio gente muito rica e veio gente tão miserável, que nem ousou entrar por vergonha. E até lá vieram sábios e reis, a cavalo ou a camelo, pretos, brancos e amarelos. Rezam as crónicas sociais que a vida familiar se recompôs, já que os murmúrios da rua traziam o velho de monco e a entreolhar o miúdo e a esposa com ar perverso. Não raras vezes foram dar com ele, taciturno, de serrote na mão. Ou de martelo erguido muito acima da cabeça, como se ideasse arremessá-lo contra o primeiro chiste que ouvisse.
Ultrapassada a novidade da romaria, também a afluência de esmoleres se achou óbulo a óbulo reduzida ao elementar em odisseias que tais, devolvendo alguma paz ao carpinteiro e à sua parceira, bem como ao respectivo rebento. Reconfortada a despensa e seus comensais, a miséria foi de todo removida, acrescentando-se um piso ao casebre e restituindo o curral à criação, agora já com maior número de exemplares: cabritos, borregos, galinhas, pombas, coelhos, cães, ratazanas e gatos, sardaniscas e mosquedo, não se esquecendo o burro e a vaca, pachorrentos protagonistas na primeira parte do filme.
Não tivessem eles sido forçados a fugir para o Egipto, alguns velozes dias mais tarde, sempre por causa da desconfiança de invejosos residentes por ali, e teriam resolvido de vez os seus problemas económicos, tendo em atenção que o filão daquele puto, filho da mãe e de mais ninguém, lhes prometia gordos e seguros proventos no futuro.

Nota final:– Qualquer semelhança entre esta história e uma outra que por aí corre haverá dois séculos, onde se conta do nascimento de alguém que acabaria crucificado no meio de dois ladrões, será mera coincidência.