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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 2 de outubro de 2007

DE AZULEJOS QUEBRADIÇOS AO LABOR XISTOSO E RIJO COMO ESCÁRNIO

“Que quem por aqui passe vá em paz e volte um dia”−, reza o letreiro à saída, ou à entrada, da povoação. Quem o executou e quando e à ordem de quem ali o fez implantar, não se sabe. Especula-se muito, muito se comenta e acrescenta, evoca-se a sapiência de cãs já delidas de silêncio sob várias décadas de mármore, proclama-se com o colorido enfático das odisseias epopeicas a aparição desse painel de azulejos onde a legenda se inscreve. Fixado num baldio ao correr da rua, qual padrão das usurpações mercenárias à sombra do madeiro em cruz, é assunto sempre grato e dado ao debate em todos os púlpitos sensíveis, desde o das homilias ao do balcão da taberna, sem que jamais se oblitere o do barbeiro, o tear por excelência de quantas intrigas se instilem. Quer na missa, à hora dela, quer no tasco, a toda a hora.
Tem sofrido, ao longo das mesmas décadas de incógnita em relação à graça de quem o pariu, ataques mil de mil vândalos nocturnos, e tem conseguido resistir por mão de amigos que o tratam, lhe saram as feridas, o rejuvenescem, teimando em conservá-lo como símbolo supremo da aldeia e de quem nela nasça, viva e morra. É gente sã e hospitaleira, solidária e não servil. É gente boa, e revê-se nessa frase inflamada, como se cada um dos seus habitantes não deixasse de a dizer a quem parte, desde que quem arribe satisfaça as normas prescritas nos canhenhos mentais de cada qual: leve consigo apenas o que trazia à chegada; e nunca pense em ficar.
Como se percebe, coexistem duas frentes opinantes, sempre em tréguas e sempre em guerra, sob um estandarte comum e por ambas consagrado, porque com distintos modos de olhar o maior ou menor franqueamento das fronteiras à aluvião da plebe andante: alguns, a grande maioria de quantos afirmem conhecer os pais, irredutíveis acerca da manutenção do filtro e dos princípios contentores; e outros, mais tenros na idade, resumidos a uma terça parte de quantos pouco se importem com a nascença nas silvas, tidos por detractores da tradição, enquanto apóstolos da demolição das muralhas ancestrais e da abertura gradual aos novos ventos em curso pelo mundo além. De pouco ou nada valerá argumentar aos desta facção de ideias imberbes, zunem os outros que o lema lendário é enganador e hipócrita ao dizer a quem por lá passa que volte um dia, quando em total verdade não se conhece uma única história de alguém cuja coragem lhe invertesse alguma vez o rumo aos passos e de novo o encarreirasse até cá. E nenhuns dividendos dialécticos conseguem os primeiros os da tranca maioritária quando esgrimem a balela de que também não há histórias onde a insatisfação de quem passou seja sequer mencionável e passível de prova.
Por mirabolante que pareça, ninguém parece ter estranhado muito que em determinada ocasião, ao sobrevir dos arrepios sobre o proémio outonal, tivesse aparecido sobre a estrutura do painel, como se óbolo fosse do cadeiral divino, um pesado pedação de ferro em bruto, resto de alfaia sem préstimo nem conserto, para lá lançado por algum gigante e com músculos de excepção, ninguém adivinhando quem, como ou com que subtérreo fim mal enterrado.
O fim em projecto oculto veio a descobrir-se no dia seguinte ao da matreirice do ferro lá encavalitado: como durante toda a noite praguejaram céus e infernos e nuvens e ventanias em coro afinado contra a terra, num fervor de despedaçar ovos aquém da postura, um dos raios previsíveis consumou o que os predadores da tradição tanto ambicionavam, rachando de alto a baixo o mosaico e num sopro o pulverizando.
Mas já se encontram graciosas miniaturas do painel à venda, em xisto e com a frase completa, a preços módicos. Tanto no tasco, como na igreja.

(Guiães, 27-09-2007)