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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 26 de junho de 2007

SUBSÍDIO PARA UMA PROVÁVEL GESTA DE EL-REI NU EM VERSÃO IMPOPULAR

De acordo com o rezado em crónicas boca-orelha, publicadas e decantadas através das fraldas do reino por quantos serões houvesse, teria sido mesmo de propósito que el-rei se achou perdido, no caos de sustos da floresta, da horda de fidalgotes e cavaleiros, mastins e lacaios menores, turba que sempre o acompanhava nas caçadas. E até consta que sua alteza, como se nas sombras da mata não se calassem perigos de morte, se deu graças por tal evento e resolveu tirar partido da situação, assaz rara naqueles tempos de contenção em andanças além do risco sancionado pela clemência divina. É que nem ao rei se dava corda para que trepasse varandins e águas-furtadas, fossem lá de quem fossem, de alugar meretrizes à peça ou de adúlteras oficiais em exercício. E por isso seria tão explícito e rasgado o real sorriso, naquela manhã de Abril de há séculos, muito aquém de se dar voz à plebe mais rastejante (a não ser aos animais, como sementeira de fábulas).
Tanto mas tanto sonhara ele, el-rei, com tal oportunidade: a de enfim poder dispor de seu exclusivo arbítrio no relativo às atitudes que por bem entendesse mais consentâneas, embora resumidas, nessa deambulação cinegética através da floresta, às que o acaso providencial de ter perdido de vista o magote de acompanhantes lhe possibilitaria. O que poderia fazer, na verdade, nestas circunstâncias, aquele cidadão, cujo simples nascimento em berço dourado o obrigava a ser prisioneiro de si próprio? Urgiria, portanto, agarrar a ocasião e congeminar algo de deslumbrante pela excentricidade. Alguma coisa que fizesse estremecer e desiquilibrar toda a estrutura do castelo censor onde só era senhor de ser prisioneiro, desde a barbacã de preconceitos ao torreão das sotainas derretidas em vénias langorosas e salamaleques.
Apeando-se num pulo repentino da montada, pô-la em fuga com uma forte palmada na garupa, mas não sem que antes a tivesse libertado do selim e demais arreios, o que a fez sumir num relâmpago, nem se imagina para onde. Depois, sacou as luvas, que lançou pelo ar atrás do cavalo, e despojou-se (com que alívio!) da incómoda sobrecarga traduzida por correias e cintos e cinturões de couro e espada e punhal e arco e flechas e chicote. E, valendo-se do ímpeto, também resolveu livrar-se de vez de tudo o que fosse manto, saiotes, bragas, botifarras, chapéu de plumagens exóticas, colares de ferro, pulseiras de prata, anéis de ouro com rubis sanguinolentos. Tudo de tudo ele quis deixar para trás a assinalar-lhe o rasto, enquanto em passo firme caminhava, apontado a um único intento: o de se quedar nu, de ponta a ponta, perante a nudez do mundo que então trajava de púrpura.
Acredita-se que teria lido, na véspera, a saga desse outro rei despido em plena rua pelas manhas do alfaiate, e bastante o impressionara a sageza do monarca, vermelhão até aos poros da alma, tomando para governar o reino ao seu serviço quem tão bem o havia intrujado. Malhas que o império tece, disse o poeta de chapéu e bigodinho. Pena é que tão melindroso seja acertar nas medidas e no feitio do fato que a todos vestirá, ou despirá, consoante a governação produzida e propiciada pelo mestre-agulha eleito. Mas isto nem serão temas a tratar aqui, se tão longe se andaria ainda de dar ouvidos e fala a quem só possuía mãos e músculos como moeda de troca.
À entrada da floresta, entrementes, toda a chusma se carpia, desde os vassalos de sinete e brasão, não esquecendo os cães, aos de pé rachado à nascença, por se ter perdido el-rei. Nada dele se supunha sequer. Ninguém mais o vira, vivo ou morto, encavalitado ou a pé. E os sinos ganiam, os sinos uivavam, os sinos bramiam. Pois então que morra quem dentes não tenha nem das garras se gabe à ventania, em função da inteligência de dar bom exemplo aos incréus e aos castos por escassez de nervo, nanja de vontade.
Ressoaram trombetas de angélicos timbres e incisão satânica na treva cerebral de um povo desfeito de dor e de pranto, que o luto assim manda. Ungiram-se as piras de levar ao lume os ateus da ordem. Levantaram-se forcas de fazer contas com a depravação a monte. E prometeu-se, porque é de uso fácil na engorda dos tratantes do comércio à rectaguarda, o sacrifício de milhões e milhões de velas de cera e de sebo, consumíveis sob o arrasto de tantas chagas purulentas quantas as árvores que se calcule existirem na floresta, como pagamento prévio pela devolução de el-rei ao seu lugar no trono.
A floresta era imensa. Diziam que só se acabava lá para mais de metade da nação vizinha, com a qual andavam em guerra haveria décadas. A que processos deitar mão para fazer uma rigorosa contagem das árvores, primeiro, e logo a seguir dar azo ao atempado cumprimento de promessas feitas, à luz de velas de sebo ou cera aos milhões? É que, se se não cumprir o prometido de olhos no alto, escusado será esperar quaisquer benfeitorias da parte de quem com elas faça negócio, seja em terra, nos abismos de magma ou no céu. E uma imensidão de preces lamurientas se puderam escutar noutras tantas bocas, à razão de uma por cada vela, mas sem a mínima cotação no inferno bolsista ou na banca celestial.
E quando aquele estranho títere reapareceu, uns meses mais tarde, na orla do bosque – sem manto de veludo nem saiotes, sem calções nem botins de pelica, sem esporas douradas por não ter cavalo, e nem uma parra a tapar as partes com que o legendário pai Adão se posterizou –, ninguém o reconheceu, ninguém se acreditou no que apregoava, ninguém lhe beijou o anel que nem trazia.
“Óbvio será que a corja da oposição se valeu de tão flagrante oportunidade – conta el-rei aos súbditos, no hospício – para implantar a república”.