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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

domingo, 10 de junho de 2007

DA LUZ QUE SÓ A SOMBRA FACULTE E À SOMBRA SE PAGUE E APAGUE

Está hoje um sol de cobras ao léu nos muros velhos, no mato, rasteiro ou alto, em ínvios carreiros de posto e sem bermas certas. E não será muito aconselhável pisá-las, as cobras, que elas não gostam. O cão não tem a menor percepção do perigo armadilhado por um sol assim. Fareja tudo e em tudo mexe e remexe, a tudo acorre. Cheira-lhe a coelho. E o cheiro cega-o, sobrepõe-se-lhe ao instinto defensivo, rouba-lhe a noção dos riscos a nunca desafiar, e até lhe inverte a posição relativa na contenda da sobrevivência, ao passá-lo de potencial predador a presa potencial, por inexperiência.
Aconselha-se um recuo estratégico. Estará na hora de lhe pôr a trela e de o trazer para mais seguros caminhos, afastando-o dos silveirões onde teima em meter o nariz, apesar do sangue a creditar por algum espinho matreiro, não tarda nada. Fosse ele um caçador congénito, e não de estufa, e bem pior seria o quadro a aquilatar no momento em marcha.
Como é costume, a esta hora, ali está um carro, com gente lá dentro, e um outro ao lado, vazio. Cada uma das personagens em cena chegou no seu, optando depois por um deles, talvez o mais amplo, como palco. Quanto à trama, em engalfinhada representação de nudez sem pejo nem trucagem nula, crê-se já escrita no dealbar do tempo, sendo desde então encenada, mesmo que de automóveis nada se aventasse, emparelhados ou solitários, em esconsos lugares arborizados ou em plenas barbas policiais, como estes, sujeitos a coima.
O polícia pigarreou duas vezes, de modo severo e grosso, sem vacilar, como nos livros se explica ser de sua competência, ao encetar as manobras de aproximação ao objectivo entretanto posto em mira. Escancarado que nem guilhotina ainda agora accionada, um dos vidros traseiros tem um pé, descalço, bem à vista de passos que passem por ali perto. E não se vê muito mais, se só se atentar na perspectiva possível, comprometida pela elevação do terreno marginal, em declínio de acentuada ribanceira, relativa ao nível da rua e de quem por ela circule, seja qual for a rota mental e o andamento escolhido.
O agente escalado um homem novato e encorpado, de raros pêlos a ensombrar o queixo e ombros vaidosos porque ainda erectos – finge nada ver, enquanto redige, lento e meticuloso e soletrando as palavras uma a uma, o auto de notícia. Mas lá vai olhando, medindo, sopesando, delambendo. E até se dá à picardia de piscar o olho ao camarada, para que também ele corra a delamber-se e a sopesar e medir. Só com os olhos, no entanto. E lá se vão todos, a caminho da esquadra, ainda que sem a ignomínia das algemas em punhos nus.
E cá de longe, nesse entremeio, revoltado e solidário com as vítimas de todas e quaisquer prepotências policiais, o canito, arteiro e atento, andou muito entretido a demarcar este novo território de caça, a partir de cada qual dos quatro pneus do carro-patrulha. E nem um se livrou da respectiva seringadela sob a perna alçada.