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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 18 de junho de 2007

UM A UM E OUTRO A OUTRO SEM QUE A SOLIDARIEDADE SE ALMEJE

Como é uso ouvir de bocas mais votadas aos desarranjos em outrem que aos próprios, roía-se-lhe o coração sempre que o acaso da vida lha deixava ver: ou era um olho – e se ela tinha uns olhos lindos! – emoldurado pela nódoa de algum bofetão recente; ou era o rubor tumefacto dos lábios, por mordedura de dentes, que não os dela; ou era a estranha preferência por vestes mais obstrutoras, em época de transparência e manga curta, por mercê de contusões a não expor à luz da rua. Aliás, se eventos sombrios e assinados por mossas não houvesse a registar, bastaria a pertinaz expressão de cansaço (no modo de andar, na fisionomia abstracta, nas mãos sem saber onde nem como, na derrocada dos ombros até ao chão), para que o roedoiro do lido músculo motor acontecesse, induzindo este em trabalhos de aceleração e tremura.
Indeglutível desgosto lhe trouxera tal casamento. Já viúvo há alguns anos, nem muitos, e numa idade em que a abstinência talvez doa mais que a fome, chegou a experimentar temor de si mesmo ao descobrir-se tonto de amor, carnal, pela própria filha. Quando a abraçava, à despedida e à chegada, era como se a bela mulher que tinha nos braços não fosse carne da sua carne e sangue do seu sangue. E até deu consigo a sonhar, de olhar pregado no tecto, onde a imagem dela parecia irradiar, acenar, esvoaçar, e de lá tombar sobre ele, como uma pluma imponderável, sem pecado que não lhe coubesse, inteirinho, no cavername do baú mental.
Por isso, quando a filha, uma tarde, risonha, aérea, saltitante, lhe apresentou o futuro marido, conseguiu contemplar-se no espelho dos olhos de ambos e sentir alguma vergonha, algum alívio, uma total libertação. Mas também medo do sobrepeso da idade sem desmentido convincente. Mas também solidão em prévio anúncio. E, de sobremaneira, a inquietação do pai a quem alguém, um qualquer intruso de dúbio aparecimento em cena e propósitos não de todo vislumbráveis, vem roubar assim, sem remissão, a sua menina, a sua obra-prima. Aquela cuja parecença com a mãe, não somente física, o fez sofrer de novo a tão amarga sensação de viuvez.
Como aceitar sem revolta, portanto, a crudelíssima realidade ora apreensível em passos cabisbaixos, em lábios tumefactos e ao rubro, em olhos – e se ela tem uns olhos lindos, tal qual os da mãe! – envoltos pela escandalosa negritude que algum tabefe a cheirar a álcool, quem sabe, ou a suor de puta, neles imprimiu? Como sonegar a tentação de pôr cobro a tão felino atentado à mais nobre arquitectura dita humana?
Retirou a espingarda do armário, abriu-a e espreitou através do cano num gesto maquinal, carregou-a com dois cartuchos, só dois, que mais não seriam precisos. Um para cada um dos dois únicos intervenientes, passivo e activo, no incontornável acerto de contas a pôr em prática. E saiu de casa, apontado a poente e à fábrica gerida pelo genro, dono e senhor.
Talvez em casa dela a esta hora, a filha, hoje, jantará sozinha.