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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 28 de maio de 2007

PANORAMA FLUVIAL PARA UMA TRIPLA VIGILÂNCIA EM PROL DO VÍCIO

Porque a força da corrente pende para a margem de lá, como se pode ver e perceber, nesta curva do rio ainda sobrevive um generoso estendal de areia. Ou de areão grosso, se se for mais contundente na observação, emporcalhado por terra roubada às ínsuas ribeirinhas, por volta das cinco da tarde de todos os dias, aquando das descargas da barragem. Ora, é neste plaino impreciso que se fincam as ervas vadias, semeadas pela brisa ou pela dita aluvião de artifício ao entardecer, alheias a quem venha ou vá, rio abaixo ou rio acima. Acontece mesmo, tantas vezes, desaparecer em grande parte ou na totalidade, durante algumas horas, este retalho arenoso; ou ver-se retalhado por ilhas, arquipélago espontâneo e de vida efémera, por virtude do inventor das alavancas.
Em qualquer das margens, o cenário habitual: como amparo das ribanceiras de terra negra, onde contrasta a brancura de mínimos malmequeres silvestres e a luminescência dos seus irmãos amarelos, ou se dá conta da guerra ocupacional entre silveirões, lúpulo florido e algum trevo, ou ainda se esgrimem canaviais cujo apego à vida nunca terá similar, acomodam-se salgueiros, choupos, acácias, amoreiras, plátanos; e há ténues esboços de caminhos, desenhados ao calhar de pés em busca de atalhos; e há o fado das nuvens de mosquitos, a defraudar quaisquer intentos de paz e contemplação do céu através das pálpebras, se alguma sombra, gentil, se antepuser como leito no restauro da sesta; e há montões de trampa, monumentais cagalhões, por ali alijados, sem dó, por quem também deveria ver-se condenado a comê-los, com moscas verdes e tudo.
O sol, espicaçado ou galvanizado por nuvens de trovoada em progressão irreversível, esbraseará em poucos minutos quem debaixo dele se aventure sem protecção apropriada. E há por aí sinos a gritar aos ouvidos mais temerários ou descuidados que já são três da tarde. Que ninguém se permita subestimar o lendário vozeirão do bronze, ou arriscar-se-á à reconhecida surdez do granito em templos de fé oposta à do endereço das orações enviadas para onde é costume.
Há movimento, contudo, onde o matagal de ervas e arbustos vagabundos sobre a areia mais se adensa e engalfinha. E não é por acção da aragem que as hastes de maior visibilidade se agitam, estremecem, fremem num ritmo certo, cadenciado e persistente, ou até se somem, de vez em quando, esmagadas por algo ou alguém, não se descobre quem ou o quê. Alguma coisa extraordinária tem ali confessado ensejo de ser causa e consequência ao mesmo tempo. E o tempo é tudo o que fica para quem se fique aquém da porta. Logo, haverá que vivê-lo passo a passo, enquanto tempo houver e a porta não se saiba escancarada. Por muito que seja assim, debaixo de fogo, num ermo areento, entre ervas sem dono à vista nem placa escrita em latim. Ervas que tremem, a compasso, sem que o maestro a dar vida à orquestra seja o vento.
E também há folhagem remexida na margem do rio, na zona exterior da curva, onde o tom verdilhento da água é aviso de que não será de calças arregaçadas ou de saias que por ali se atravessa a vau. E lá está ele, o crónico vulto, agachado entre as silvas, de braguilha aberta e a cuspir nas mãos de enganar prepúcios, já lá vão horas. E até há um outro, como se a selva tivesse viajado desde a fornalha tropical e algum chimpanzé se instituísse no cargo de embaixador, empoleirando-se num choupo com binóculos a vasculhar o areal.
Por volta das cinco, já não falta muito, o nível da corrente vai subir, vai invadir em grande parte o leito a descoberto, dando origem a ilhotas de insignificante expressão. E numa delas, lá no meio do matagal alagado, talvez alguém nem se aperceba de quanto a água subiu.
Quanto ao símio dos binóculos, pode ser que escorregue e se despenhe para cima do que na berma todo se empertiga para espreitar o que na cama de areia se passa. Ou seja aquilo que provocará, com cadência de metrónomo, um tal treme-treme nas hastes e nas folhas longilíneas.
E até pode ser que, com sorte, nem troveje.