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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 16 de outubro de 2007

ÁGUAS PASSADAS NÃO VOLTAM SENÃO QUANDO A CHUVA QUISER

O mestre senta-se ao piano, ajeita as lunetas sobre o osso do nariz, coloca a pauta em branco no cavalete, verifica o estado do bico do lápis, rombo de mais, pelo que de novo se levanta para o aguçar. Após a singular operação a canivete e sopro das aparas para a lareira, senta-se outra vez na banqueta e outra vez ajeita as lunetas no cabide natural do nariz, porquanto a pauta já lá está, fulgente e medonha de tão em branco, antes e após estar afiado o lápis.
Uma hora mais tarde, duas horas, muitas horas, toda a noite atravessada de berma a berma, e a brancura da pauta não se rende. Sequer um acorde, uma nota simples como um pingo de som na água do lago onde desagua a manhã. Amanhã, por esta hora, mesmo que não chova, a água do lago estará mais turva e a alvura da pauta ofuscará os olhos que nela queiram lavar-se, serenar o ardor e apenas adormecer. Quem sabe se durante a viagem dos olhos através do sono não se dão a ver panorâmicas deslumbrantes, passíveis de recolha e tradução em gotas melódicas, gotículas espargidas em gesto amante e amigo como redentora purificação.
E quem sabe se o mestre, por outro lado, não cede à tentação do desânimo sem meias palavras a atenuar, ao reconforto da desistência pura e simples, e não resolve dedicar-se a semear batatas, nabos, repolho?
Antes viver com as mãos sujas de terra, mas úteis e sapientes de si próprias, que tê-las lavadas e perfumadas pela patranha do êxtase contemplativo de fora para dentro. Que o mesmo é dizer inúteis.