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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

À MISÉRIA DE QUEM SIGA E À FORTUNA DE QUEM FIQUE

“Mais vale ficar velho que pobre”−, decretou o velho, em voz de pau enfermiço e inconvicto, gasta como ele. Vozes há que ao ouvi-las dizem tudo sem que nada de importante delas se escute e se pondere, se compare, se memorize, se torne pão e milagre. Basta-lhes ser para que não sejam.
E está no ar o sacramento das vindimas. Tudo o que acontece, gira em redor da quase sagrada missão de esvaziar as vinhas e pôr a correr essa poderosa infusão inventada pelos deuses, para que nunca deles se negasse a raiz humana.
Entretanto, com o velho, estão outros. Tão velhos como ele e como ele ricos, decerto. A riqueza é ao que se crê relativa. E tanto é rico o que tem como o que não tem tanto. Já com a velhice, não será bem assim: um velho é um velho, e não tem marcha-atrás nem pega nas descidas. Aquele, todavia, por se intitular rico, pensa que o ferrão da pobreza pica mais fundo que o lumbago ou a gota dos decrépitos como ele.
Estão à porta da adega, a preparar o vasilhame e a engrossar as perspectivas com o inevitável optimismo. Já fará parte da lida agrícola esta espécie de contabilidade prévia em relação ao número de pipas e ao grau hipotético, sempre o mais alto de sempre até ao da safra que virá um dia. E bebem vinho do antigo, conservado para assinalar ensejos como este, em que se engrossarão as perspectivas com o inevitável optimismo e o vasilhame recupera o ar activo.
“Olhe que não sei”−, replica outro velho ao outro, um quarto de hora depois, ainda a cismar no que lhe ouvira. Ouvidos há cujo tempo de reacção será mais explícito que uma resposta pronta a servir no momento, seja ela discordante, esteja em concórdia total. Basta-lhes ser para que sejam.
“Nem eu”−, acrescenta um terceiro ao segundo velho, ao fim da tarde do dia seguinte, no regresso do cemitério, a pé, com todo o vagar, onde acabaram de deixar enterrado o primeiro, o dono da adega e rifonista por mania visceral que se dera ao descuido de começar a conversa.
É que no preciso instante em que este, ontem, outros quinze minutos mais tarde, já erguia o copo em gesto amável, como enfático enquadramento da contra-resposta a despejar sobre o promotor da discórdia, teve um ataque, deu-lhe uma coisa, foi-se. Nem mais um ai se lhe ouviu.
A riqueza é ou tal se aparenta relativa. Mais vale ser rico que pobre, mas antes pobre que morto.
(Guiães, 29-09-2007)