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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

DO MAU FEITIO DE CUSPIR NO CHÃO À TOLEIMA DE O FAZER NA PRAIA

Por enquanto, a mesa do café é uma praia remota: tem tanto de nostálgico como de incógnito. Não há maresia no ar. Nem barcos de borco areal acima. Nem sequer um roteiro unívoco de pegadas ziguezagueantes conforme o rendilhado terminal das ondas. E nem mesmo a sujeira de algas velhas e alcatrão e conchas que importe nunca pisar, isso não, ou a incógnita só perdurará até ao primeiro escarro de repulsa e ao exagero de arremessar os chinelos, pendurados na mão, contra a lonjura de um horizonte sem culpa de não ter ouvidos.
Quando o funcionário, sinuoso e reverente, aqui implantar o odor vaporoso das chávenas, a praia nunca mais será remota como antes. E nunca mais incutirá nostalgia no imaginário de quem nela se estenda a aspirar a tarde, a entretecer enredos no entretenimento de repisar pegadas de outrem, a devassar a vastidão de horizontes contra a lonjura de uma inspiração já tardia em fazer-se ouvir.
“Não ponho açúcar no café há já vinte e cinco anos”–, diz uma voz para outra que até agora nada disse.
Alguns mastros a ver-se para lá das dunas, como se em terra navegassem, quererão dizer a quem venha praia adiante que ali há estaleiros moribundos, heróicos na resistência à queda em seco, símbolo último do naufrágio sempre anunciado por excesso de peso em âncoras.
Não se descure, porém, o pormenor de que tudo isto se passa sobre a mesa do café onde se sentam duas vozes, sendo que a uma delas só a moleza bocejante, até ao momento, teve artes de se lhe escapar em esgar espreguiçado e lágrimas. O perigo maior, portanto, não é o de não saber nadar quem ao leme se empertigue contra as vagas, com ou sem açúcar desde há um quarto de século, mas somente o de se não dispensar o gesto de dar corda ao relógio do tempo com a colherinha, como se com ela se adoçasse este desengano da vida.
Torna a ser praia remota, de repente, a mesa do café, quando um bando de gaivotas passa lá por cima, ante a aproximação vespertina das traineiras, talvez carregadas de pão…
“Acertou-me mesmo na chávena, aquela puta!”