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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

FÁBULA QUESTIONÁVEL DE MORAL AMBÍGUA E FECHADURA UM TANTO INFELIZ

O lenhador voltava para casa, quando viu o lobo. Mas o lobo, deitado no feno, não viu o lenhador. Ou então fingiu não ter visto. Tinha o ar inequívoco de quem acabou de emborcar uma lauta refeição e pensa na inevitabilidade da soneca compensatória de tamanho esforço. “De quem seria a ovelha?”— pergunta-se o homem de machado às costas e boina adornada sobre a orelha esquerda, não parando a caminhada em direcção aos prazeres da mesa e da cama em final de jorna. Eram já velhos conhecidos, quase amigos, lobo e lenhador. Respeitavam-se como adversários, por preconceito ancestral, não deixando de piscar o olho um ao outro em saudação.
Dobrando, o de boina e machado, a última curva antes das primeiras casas da povoação, deu de chofre com um grupo de pastores e outras tantas espingardas e varapaus. Iam a caminho da serra, onde estaria com certeza, refastelado no feno, o causador da perturbação entre as hostes residentes no lugar. Instado acerca do paradeiro do assassino a monte, que não revelou, conseguiu convencê-los a desistir, por ora, de tão assanhadas pretensões de vingança. Que não tardava nada era noite, nada se veria na serra, onde é que o bicho já estaria, bem longe dali, com certeza. Que amanhã era outro dia, rematou.
Arrancou-se à cama ainda mais cedo na manhã seguinte, o lenhador, antes dos outros, e de machado às costas e espingarda a tiracolo, não esquecendo a boina, lá abalou para a montanha. E também levava ao ombro, não se sabia para quê, uma enxada e uma pá.
Quando os mentores da vindicta, ainda furibundos mas não tanto já, se acercavam das vertentes que a seguir teriam de trepar, ouviram-se com toda a nitidez dois tiros, algures acima da pressa que os guiava e atrapalhava, decerto. E ao chegarem lá ao alto, duas horas depois dos disparos, o que viram eles? Alguns vestígios de sangue derramado de fresco na caruma, e um montículo de terra, oblongo, ou com formato e dimensões de sepultura mal acabada de receber lenha. O lenhador, que os esperava, algo sorumbático, entretinha-se a unir dois paus em cruz para encomendar a campa às alturas.
“E porque não um ramalhete de rosas?”— pergunta o dono da ovelha desaparecida e que não teve direito a honras fúnebres, ao abandonar o ermo, desconfiado, a fim de regressar à planície na companhia dos parceiros de empreitada, também eles desconfiados de tal pundonor na devolução ao pó daquilo que do pó teria nascido. Não fosse a aura de homem honrado que lá na aldeia envolvia o lenhador, e ninguém aceitaria retirar-se dali sem reabrir a cova e atestar o conteúdo, lobo ou láparo, o que fosse. Ou coisa alguma.
E tinham razão, os cépticos. Ainda se a boina adornasse para a banda oposta, verosímil seria ele não correr tão depressa fraldas arriba para de algum jeito dizer ao quase amigo lupino que a hora era de arriscar outras paragens serranas, outros lenhadores, outros pastores, outros rebanhos. E o jeito encontrado, estando já lá em cima muito antes de quantos lá foram, foi o de pregar dois tiros no lobo e logo o meter na cova, entretanto cavada à unha. Os promotores da punição, chegados muito depois, acreditariam nele sem acreditar, e voltariam para casa, irritados e convencidos de que naquela sepultura, tivesse ela cruz ou não, nem um grilo estaria enterrado. Era essa a ideia: impor a dúvida onde a incerteza crónica fosse hospedeira.
A ovelha morta no primeiro parágrafo desta fábula? Era um carneiro velho e gasto, afinal, e já nem para cobrir serviria. E o lenhador, diria o lobo, era um bom filho-da-puta.