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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

CENA DE SOLIDARIEDADE SOCIAL COM SESTA E SOPA À BRUTA COMO INSTRUMENTOS

A sopa está boa. É da grossa. Ainda há quem saiba fazer sopa desta, à velha moda. E é um regalo, até para os olhos, comer sopa assim. Nem conduto é preciso. Duas pratadas ou três, e está o gado em condições de partir para o ataque à sesta, havendo onde. Embora sempre caiam bem, no aforrar do bandulho, uns vestígios de chouriço, de morcela, de toucinho, não esquecendo o aconchego da meia litrada, claro. Depois, já de papo ao ar e boné tombado sobre o nariz, adormecer a palitar os dentes, consolado, ou a prótese que em vez deles morda ainda, seja ou não a imaginação a lamber os beiços no fim.
“Sempre me acode a história do frade e da pedra guardada no bornal para fazer sopa”—, diz-se o mendigo, interpondo um arroto de rasgar pano, bem dos confins viscerais. Uma daquelas exalações gasosas em que nem o rugido do leão na savana, coadjuvado pelo de algum avião a jacto, se lhe compare. Acção nojenta. Até os passaritos protestaram e se lançaram em marcha acelerada para outras atmosferas de maior salubridade. Fenómenos há, e esse é um deles, na contemplatividade vivente, cuja exteriorização em público será, entre outras facécias de igual desnível cívico, abominável. Matutando um nada, o arroto é um peido às avessas, nem mais, ou em sentido contrário.
Aí um quarto de hora mais tarde, ainda aquém dos portões de acesso à estância etérea do sono, estando deitado sobre a ilharga esquerda e com o braço respectivo como almofada, o sem-abrigo muda de ideias e busca assento no lado oposto, enquanto se ouve, em voz remordida de indistinta proveniência: —“Porco!”
Mais um quarto de hora varrido sem ser pela brisa, e ei-lo a procurar de novo a posição de arranque, sobre a esquerda, revelando sinais de inquietação perante a tardança no efeito dos atilhos mórficos. Então, à laia de quem descarregue o excesso de nervos em outrem, quase se lhe escuta em urro a contra-resposta: —“Querias que engolisse?”
O cenário envolvente é o de qualquer recanto de jardim à beira-rio, à sombra amiga de salgueirais e choupos, algumas laranjeiras híbridas contra a ladroeira da fruta, o ranzinza coaxar das rãs como constante a ouvir-se sem demasia, e sobretudo a ausência de fardas e bigodes a passarinhar por ali, àquela hora. Talvez o mais perfeito lugar de todo o firmamento, se a estes olhos sem telhado por cima, encerrados à luz mas não submetidos à penumbra interior, se sobrepusesse a silhueta de ninfas aladas que ao sono tenham por missão ceder o apanágio das asas e ainda embalar-lhe a renitência com trovas de amor.
Teria exagerado, o mendigo sob escuta, no número de pratos de sopa que conseguira açambarcar, e daí a sensação de enfartamento e a má disposição, com o consequente desarranjo das múltiplas funções que no organismo se interligam e afinal lhe imprimem movimento, fome, sede, receio, mágoa, riso, sono, ou, numa única palavra, vida. “Podias ter refreado um tanto a implosão”—, ouve ele de si mesmo, enquanto outra vez se enrola sobre o lado direito e chega a entreabrir os olhos, apoquentado pela gana de nunca mais adormecer.
Um último quarto de hora de resistência à tentação de abandonar de vez a refrega, e de novo opta por se enroscar sobre o flanco esquerdo e pelo braço dobrado como travesseiro, acto aproveitado como deixa para mais uma entrada, onde a contundência verbal se vê condenada a ser norma fixa: —“Eu refreava mas é o cabrão do sono!”
Cansado de tantas vezes se voltar para um e outro lado, experimenta enfim a pose prevista desde o início: as espáduas assentes no relvado a fundamentar o resto; o boné lá em cima, onde se disse, escondendo os olhos e o nariz; os dedos entrecruzados sobre a colina do ventre, à espera de ordens de investida contra mosquedo ou formigas, flagelos a ter em atenção; os joelhos flectidos, não muito, ou um deles sim e o outro não; e os pés, lado a lado, com algum espaço intermédio, lestos na reacção, seja a que for, se necessária. E não é que adormeceu logo depois, ainda mal selara as pálpebras com goma própria?
Os passaritos, todavia, não regressaram. Se a indecência do arroto os afastara para céus remotos, o ressonar do animal refastelado, agora, é um pavor. E aquele palito na boca?