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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

ONDE E COMO A BEXIGA PODE SUBSTITUIR O CORAÇÃO COM DESVANTAGENS

Com as ideias a ferver, noite arriba, apetece passear à chuva. Ou com elas mornas. Ou até frias. Prazer antigo, este, trazido desde a idade de a não ter (a idade) como fado a desfiar ao serão entre lamúrias. Nada de mais como material filosófico de pechisbeque, a dissecar, devagar, não vá o fiasco da especulação estoirar-lhe os tímpanos e aninhar-se lá dentro, na fornalha das ideias, apagada que esteja. Aliás, por tanto falar de ideias, com que termómetro se lhes mede a temperatura? Ou que altos filósofos dissertaram algum dia, em algum lugar, perante a sonolência de altíssimos tribunos na hora da sesta, tendo como tema de análise esta estúpida mania de andar à chuva na rua? Melhor fora aproveitar as calorias em proveito da debelação desse gelo invernoso que, por ser tempo dele, por aí tem andado a fazer mossa. A desgraça consegue chegar à plenitude, entretanto, porque há neve na serra e o vento, vindo de lá, solícito, corrosivo, é daquele que trespassa a alma, ou seja o corpo onde ela, ao que consta, residirá.
Tem alguma coisa de fuliginoso nos olhos (fá-los arder) esta epopeia de luz artificial em duplicação contínua, pelo menos, e enquanto não parar a chuva, nas pedras da calçada. É como se se caminhasse sobre um espelho de tosca fidedignidade mas perseverante, entrecruzando e misturando ou anulando as várias sombras a pisar sem querer, aos pés. Em aproximação ou a distanciar-se, tanto monta. Tudo em tudo muito semelhante à irrealidade de um filme projectado numa sala às escuras, a preto e branco e depois colorido à mão. E para que o filme resultasse por inteiro, só faltava o fumo do cigarro, acabado agora de acender num vão de porta sem dono. Legendas? Não, obrigado.
O cão, já velho de mais para que o nariz ainda lhe acuda, apareceu do nada e quase sem parar alçou a perna e mijou-lhe um sapato. A porta de ninguém, afinal, era dele. Estará sinalizada, disso tem já a certeza, pelas mijadas anteriores, o que equivale a dizer que o nariz ainda lhe acode, ao cachorro, apesar de velho. Chova ou não chova. E o melhor é voltar para casa. Que gozo dá andar na rua, assim, debaixo de água despejada a cântaros e com um dos sapatos, o direito, mijado por um vagabundo de quatro patas e rabo todo lampeiro a abanar? Por outro lado, porque não haveria de aproveitar o exemplo canino e esvaziar a bexiga, atestadíssima, contra a porta?
“Por favor, dá-me lume?”—, ouve a alguém, também de nada feito até há instantes, a sair não se sabe de onde. A porta, aquela única porta a que acorrera por coacção da chuva e que o cão vadio reclamara como sua, estava só apoiada nos umbrais. E quem a abriu, vindo de dentro, pede-lhe lume para uma boquilha de cigarro tremelicante em mãos femininas, longas, sugerindo garras.
Ora, se bem que, do interior da casa, lhe chegue um incómodo cheiro a bafio de masmorra sem utentes, acaba por ceder à curiosidade e ao convite para entrar, refugiar-se da chuva, enxugar a roupa, descalçar o sapato malcheiroso pelo baptismo e pô-lo a secar na lareira, tomar um conhaque reconfortante...
“Não leve a mal. O meu cão é muito cioso do terreno onde vive, como se dele fosse proprietário”—, sussurram as mãos longilíneas, com um formato de garras prontas a estraçalhar. Pertencem essas mãos a uns braços também longos, e esses braços a um corpo de longuidão bem a mais que qualquer pequenez complexada, e com tudo no seu lugar, ao dispor dos olhos todos e talvez não só. E que longas e bem aprumadas e sólidas hão-de ser aquelas coxas.
Ao regressar a casa, ao fim da manhã do dia seguinte, lembrava-se de tudo muito bem, isso lembrava, menos do que ou de quem, durante a noite, lhe teria encharcado, e logo de mijo, o sapato esquerdo.