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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

BINÓMIO EM DESEQUILÍBRIO QUE SÓ NO FIM SE REEQUILIBRA E AJUSTA

Eram dois velhos nesta história. Um, pobre e temente. O outro, rico e prepotente. O pobre andava a pé, ou na bicicleta emprestada por um vizinho, não tão pobretanas como ele, porque até tinha uma bicicleta para emprestar aos amigos, o que agora não vem ao caso de que aqui se pretende falar. O rico, podendo dispor de um automóvel diferente conforme o dia da semana ou o estado climático, até tinha motorista fardado, jovem, de bigode e com estranhas apetências no respeitante à condução da conduta, o que por ora também será supérfluo estar a invocar como lenha para impor alma à fogueira. Que importa a quem divulgar que pairava no ar a desconfiança de haver algo entre os dois, serviçal e amo, algo de muito mais íntimo que a cúmplice intimidade em ascensão entre seres opostos e todavia iguais, porque a vida tanto queria que juntos estivessem sempre?
O pobre tinha tempo para tudo, desde que tudo não fosse usar roupa nova; calçar de vez em quando sapatos que outros menos pobres não quiseram já calçar por estarem gastos; comer a horas certas a certeza de ter algo que comer e não apenas vontade; dormir sobre colchão de molas a vituperar o de folhelho ou de chão igualzinho ao chão da rua, de empedrado ou terroso; ou ainda insurgir-se e erguer os punhos da voz contra a miséria reinante. Já o rico, irado, queixava-se de não ter tempo para nada, quando o nada não se resumisse a comprar mais e mais terrenos de cultivo cultivados por outrem; casas e casas, bairros inteiros, a sufocar os fins de mês a centenas de locatários candidatos ao suicídio; milhões em acções bolsistas a vender por biliões; amásias sustentadas por joalharia preciosa e altos manjares envernizados por violinos e valsas; conglomerados industriais, gigantescos entrepostos a comerciar não importaria o quê, empórios mediáticos com estações televisivas e jornais fingindo guerras entre si; frotas transportadoras ou turísticas ou bacalhoeiras ou outras; e ainda iates, veleiros, aviões, carros desportivos e demais brinquedos dourados e de exclusividade a pagar a peso de ouro. Seriam portanto a tese e a antítese de quanto se quisesse equiparar para engordar a zoeira.
Não há muito enviuvado, com muitos filhos e netos, o pobre, quando perguntado acerca, proclamava sentir-se bem com a obra produzida, uma ranchada de bocas e cus (palavras dele) a perpetuar-lhe o nome muito para lá do apito de embarque. O rico, também viúvo e também com descendência confirmada no registo, afirmava constrangido não ter ninguém em vias de o continuar além-seixos, que é uma forma de dizer, já que à espera dele ele bem sabia estar um túmulo marmóreo, de família, com séculos de existência a guardar a falta dela, e nunca o escárnio dos vermes a trabalhar, em defesa da sobrevivência, ao nível das campas rasas, entre seixos e raízes. “Ladroeira maior que a deles, só a minha!”— rosnava ele, aludindo aos familiares, um outro tipo de vermes sugadores por excelência.
Nunca na vida se teriam encontrado, aqueles dois velhos, o pobre e o rico. E depois do colapso devolutor de cada qual, distanciados um do outro mas em datas quase simultâneas, também não será de crer que em qualquer ponto da viagem se tenham conhecido, confraternizado e confrontado os respectivos percursos. Que se diriam eles se o acaso da conversa os fizesse concluir que o garanhão motorista era um dos netos do pobre que nem bicicleta tinha, a não ser por empréstimo do vizinho, não tão pobretanas como ele, porque até tinha uma bicicleta para emprestar aos amigos? Isso, contudo, como já foi dito, não vem ao caso de que, aqui e agora, se pretenderá falar.