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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

ONDE SE DÁ LUGAR À MANIA DA LINGUAGEM CINEMATOGRÁFICA AO FALAR DE ÁGUA

O nevoeiro adensa-se. Manda a quietude. A luz dos candeeiros ainda tenta, mas não chega muito além deles, e os raros insectos serão setas a dividir um instante em dois. Predominam a negridão indevassável e os tons cinzentos. A ambiência é de filme aquém da cor. Há um toque perverso, entretanto, nesse irreal simulacro de mantilha, ministrado pelas sombras em torno e pelo adiantado das horas, bastante adiante das que a corda da razão impelirá. A espaços, mais contundentes que metrónomos para mãos lerdas e lentas, escutam-se pingos de chuva, engrossados na passagem através do arvoredo, quando de regresso à pauta desenhada por folhas e frutos podres no chão. Daqui partiram, um dia, em regato, que veio a ser rio e mar e depois nuvem e de novo chuva e pingos a engrossar pelo arvoredo. E aí estão eles, outra vez, a confirmar a presença, sempre aptos a iniciar e encadear novos ciclos viageiros nos que vierem fechando. Bem mal hão-de estar os mortais quando não se completar o ciclo porque a água evaporada não torne a borbulhar e a correr na fonte-mãe.
Só o bafo da respiração, hoje, teria artes de perturbar o remanso que a espessura do nevoeiro favorece. Mas ninguém anda na rua a horas destas. Ninguém se arrisca a pôr um pé fora de portas e a deambular por uma cidade dormente e alheia a tudo e a todos. E não apenas por causa dos conhecidos transtornos da chuva, na iminência de surgir a qualquer momento, mas porque o frio ainda mostra ter muito a dizer de sua lavra. E se o Inverno é tempo de azedume entre os elementos, retempere-se o alvoroço dos olhos com as tonalidades próprias desta hora, do quase branco em auréola dos candeeiros ao negro profundo da cenografia em volta, passando por quantos cinzas se imponham à paleta do imaginário. E nem há nada que suplante a lucidez da visão, de olhos voltados lá para dentro, às cinco e meia da madrugada, que o mesmo é dizer da manhã de novo dia, apeteça ou não.
Não passasse o rio tão perto daqui, e a bruma nem se esmeraria tanto em diluir formas palpáveis apesar da escuridão, esmaecer o rigor dos contrastes produzidos como opção encobridora de fugas em marcha, ou não mais que aproximar sumindo os intervenientes contratados a esmo, sem exigências de vulto, arbóreos ou de todo despidos de vida que não seja a consentida por quem passe e olhe, de dia ou de noite, madrugada acima ou abaixo, pouco importa.
Porém, atenção, ali, por detrás das sebes, há algo ou alguém a pôr em sério risco a quietude, que no guião original se previa como vantajosa em manter-se, e a tornar obrigatória a inserção de alterações. Nada o prenunciaria nas estrelas que nem estão à vista. Mas aquilo que agita o quadro (ervas, flores, arbustos próximos), isso sim, aparece agora e logo se some em correria no âmago do invisível em redor de quantas conjecturas se conspirem: era um cão. E do dono, talvez acorrentado, nem um latido.
A ambiência não é só de filme aquém da cor. Também é de aquém do sonoro. E a falta que faz um piano e quem o saiba tocar.