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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

TALVEZ A HIPOCONDRIA REVELE A FÓRMULA DE RECOLORIR A NEBLINA

Por vezes, muitas vezes, todos os dias ou quase, e sobretudo todas as noites, põe-se a magicar acerca dos erros cometidos desde a primeira infância até à última, a que entretanto acontece. E logo na lembrança se lhe definem alguns rostos de mulher, de modo vago, primeiro, e só depois em pormenor. E mais adiante um nada, os respectivos corpos, as respectivas histórias, passagens episódicas, nomes, interligações e derivantes, o maior ou menor grau de consecução e reciprocidade no envolvimento, quanta a lonjura temporal na resistência à erosão dos sentidos, e do aleijão consequente qual a fundura em quem, ao cair o pano sobre a hora fatal do desenlace.
De nada lhe valerá a lamúria como unguento curandeiro de maleitas cuja etiologia ele bem reconhece, e há muito. Os anos passaram um a um, devagar, como se os arrastasse o tédio, e de repente aí estão eles, contados e recontados, fingidos, negados, amaldiçoados, e sem parar para descanso e conveniente restauro a contagem inexorável de cada dia mais a subtrair, hora a hora, instante a instante. Mas se a lamúria não conta para o equilíbrio das contas a fazer em breve, há-de contar o lado bom das memórias desfiadas como rosário em mãos ímpias, a outra face ainda não oferecida a esbofetear, reclamando como ponto de honra a revisita com carácter regular aos tais rostos de névoa, aos tais corpos mumificados pela recordação, àquelas histórias em que a inventiva de hoje se atreve à prosápia de estar mais perto da verdade que a própria realidade experimentada.
Alguns desses rostos evocados, sem querer ou por desejo confesso de os reler, perderam o pé na travessia a vau e lá os fez sumir a torrente sem devolução por desistência. Outros, o desvairo os vai mantendo à espreita de recidivas, tão nociva a fantasmagoria do susto remordido haverá décadas. Outros ainda, de menor afinco na impressão sobre a pele, pouco ou nada sobrecarregam a bagagem declarada. E já só um ou dois, não mais, em alternância, se lhe ostentam como projectados numa tela de cinema, repetindo cenas mil vezes repetidas e trazendo ao de cima o destemor tardio, que não falsa vergonha por cedência à mediocridade, de algumas lágrimas. Não é assim tão feio um homem chorar. E o arrependimento, liberto da peçonha do remorso, não fica mal a ninguém, embora tão inútil como acender velas para ofuscar a desmesura de luz solar ao meio-dia.
Entre os demais, um dos tais rostos já idos reserva-se o maior tempo de projecção na penumbra de insónias em sessão contínua. Porque a morte física o elevou ao púlpito da quase mitificação? Era de grande fartura, e até esbanjamento, aquela era. E da fartura à cegueira basta um pulo de gastrópode ranhoso. Eram enormes, amendoados, doces, muito mansos, os olhos dela. E o sorriso era tão-só o mais radioso de quantos sorrisos floresceram desde antanho na cidade. E só por isto, por tal sorriso, pecaminoso seria rememorá-la pelo corpo, relembrar ocasiões de comunhão e total arrebatamento através de um éter não acima dos lençóis. E reabrir lanhos antigos e talvez ainda purulentos pela mentira que neles foi gume e foi golpe.
Outros rostos houve, outros corpos haveria, outras as reminiscências a haver. E o mais veio a ser uma rica colecção, que mais também não seria, de pernas boas, de belas coxas, de mamas ondulantes, de gentis palmos de cara, e, em determinados casos, de pronta aquiescência ao primeiro assédio à cerca do pomar, de alterosa avidez como resposta à voracidade contrária, de insaciável insatisfação conjecturável após horas e horas de enfrentamento das vagas.
“Estás muito a tempo de voltar à masturbação”—, determina ele, em voz baixa, perante si mesmo. “Difícil será que te desiludas”—, remata logo a seguir, em voz alta, para que o eco o corrobore e lhe acuda aos arrepios, que sempre o tomam quando se descobre a falar a sós. Mas é isto a doença da escrita. Doa ela a quem doer.