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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

PROCURA-SE VIVO OU MORTO QUEM ALMEJE VER AS FLORES DE MUITO PERTO

Os olhos estão abertos. Estará morto? Caído no feno, de bruços, com a cabeça de lado, sobre o ouvido esquerdo, apoiada na terra. Como se dela fizesse questão de auscultar o metrónomo cardíaco, o compasso da respiração, a fluência sanguínea através dos vasos; ou como quem tencione informar-se da aproximação de algo, ou de alguém, do ermo onde há muitas horas se lhe impaciente a espera. O assombroso é, na hipótese de viver ainda, que não pestaneje sequer, que nem a mínima lágrima aliviadora da ardência nele tremeluza e corra até ao chão, ali tão perto. Só o cabelo, longo, farto, quase negro, promove a ilusão de estar vivo conforme apeteça ao vento. E o vento é apenas brisa, uma aragem hesitante, sem convicção nem propósitos de fingir vida onde ela escasseie e logo deva ser objecto de cuidado. É não mais que o ar sobreaquecido, pela fornalha diurna, a abalar e a regressar em busca do comedimento garantido pelo crepúsculo, bem como pela noite em flecha sobre quanto haja a esfriar, corpo que seja de sangue, ossos, músculos, nervos, ideias —, capaz de caminhar de pé e de procurar a rota que mais apropriada se lhe afigure. A não ser que caia, ou a isso o obriguem, saiba-se lá por quê ou para quê.
A um palmo mal medido dos olhos, uma flor minúscula. Talvez roxa, ou talvez azul, talvez de outra cor qualquer, não dá para ver. A luz é a das estrelas num céu limpo, mas sem luar nem artifício de lanternas, archotes, velas crentes ou ímpias, tanto faz. E um insecto pousado na flor, a arrogar-se o papel de enfiteuta sem intenções de tão cedo dali arredar pé, venha de lá quem vier. Os olhos, não se sabe se mortos se vivos, estão pregados neles, flor e insecto. E apesar da míngua de luz, a vir de estrelas distantes de mais para que a treva não saia a ganhar no prélio milenar com a luz, ambos, insecto e flor, se revelam pouco à vontade, decerto incomodados pela imposição daqueles olhos, a nem um palmo, apagados que estejam, não se sabe ainda. A flor e o insecto serão obrigados a aguardar, com paciência, que o enigma se decifre e os deixe recuperar a liberdade de acção, levando se possível para bem longe, sem retorno, os olhos e o resto de um corpo tombado na erva, de borco, susceptível de fomentar perturbação e desequilíbrio numa ambiência natural e alheada, até agora, da obrigatoriedade de ter em mente a existência de outro mundo além do horizonte, pois é para lá que vão e é de lá que vêm os pássaros viajantes.
Embora dali próxima, aí a uns oitenta metros, até se veja uma vereda mal empedrada e situada entre muros de barro e pedra solta, antigos e em permanente ruína, ou o mesmo será dizer uma rústica azinhaga no meio de silveirões avantajados (perfeitos como mirante de cobras e ratazanas e mais residentes em condomínio de gestão assaz difícil), não é um local de passagem habitual, e sobretudo de noite, pelo que improvável será aparecer tão depressa quem descubra o corpo caído de bruços, no feno, e lhe acuda, estando vivo. Ou participe o achado à jurisprudência de piquete, ante a contingência de aquela alma já lá ir Letes abaixo, para que seja removido e deposto no plaino que por ele espera desde a nascença, remota ou recente. A morte nunca foi mais que um humílimo ponto na paisagem, foz de rio, grão de areia a cair entre outros grãos de areia na exiguidade relativa do deserto, termo de viagem sem bagagem a declarar. Tardia ou injusta, prolongada ou instantânea, a morte não deixa de ser, todavia, bem mais extensa que a vida. Mas não é tão mentirosa.
A humidade do ar nocturno, a adensar-se, engrossa a vista. Não tarda nada, nada de nada se descortinará em qualquer sentido. A parca luz do firmamento perderá a nitidez e cegará quem a ela recorra e se lhe confie. Por completo se desvanecerá a já rudimentar noção de tons e formas, podendo atingir mesmo, em breves instantes, o susto do zero absoluto na obscuridade ao ar livre. Nem faz grande falta, a luz. Falta faria, se imperioso se apresentasse o préstimo de auxílio a quem dele tivesse urgência, neste ou noutro lugar. Será o caso?
Mal a manhã reponha vida na cena, verificar-se-á que do corpo caído na rudeza do chão, nem o cheiro. Nem sequer o leito inscrito no feno amassado, porque nele estivesse um corpo estendido, vivo ou morto, não se sabe, ao longo de tantas horas. E nem da flor. Se azul, roxa ou vermelha, se de outra cor qualquer. O insecto, um escaravelho com a vesânia da perseguição a outrem, tê-la-á comido.