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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

DA RECORRÊNCIA IMPUTÁVEL À ESTAÇÃO EM QUE O CALOR DA NOITE SUSCITA PRAGAS

A coisa começou por volta da meia-noite e um quarto. A temperatura era de abafo usado em pleno estio. De suor com nascente no pescoço e trajecto espinha abaixo até ao desfiladeiro entre nádegas. E o sono, como já era de regra consagrada a contragosto, resumia-se a bocejos lacrimejantes (ou lacrimijados, admitia ele, só para si) e ao descuido de espreguiçadelas infinitas, das de estalar ossos, sem que da ameaça dessem mais uns passos e o convencessem a cair na cama. Apesar de tudo, fraquejou ante a própria exortação e lá se deitou, sem se despir, em cima dos lençóis. Empertigou-se apenas na tarefa de descalçar os sapatos, com a ajuda das biqueiras e do dedão respectivo, e de os pôr lado a lado, já com as mãos, sobre o tapete. Pormenor insignificante, aquele dos sapatos bem perfilados, ou prova provada de insegurança nalguma decisão mais contundente a tomar?
Não correria meio minuto além do instante em que desistira do livro em mãos, apagara a luz do candeeiro e se enroscara em posição fetal sobre a ilharga direita, e o assalto principiou. Primeiro, ao longe, um zumbido de manifesta procedência, como se fosse o vagido resignado de algum arrastão a caminho da faina, quando toda a gente, menos o homem do leme, dorme e ressona. Depois, como se a traineira tivesse já dado a volta em fim de safra e de repente se aproximasse de terra e carregada, o zunido foi crescendo, crescendo, crescendo, em direcção a um cais situado junto ao lóbulo da orelha esquerda, porque a outra deveria estar algures lá por debaixo, na face oculta, bem intrometida na maresia morna dos lençóis, simulando nada ouvir do que a mana ouvia de mais. E por fim, já sem expectativa por força do clamor dado a escutar através de quantos sete mares se acometessem, de quantas mil intempéries se engendrassem, o término da viagem anunciada: a ferroada do costume, com exactidão de bisturi, fulminante. Se o que dizem ter sido o criador de quanto existe e não existe à superfície do planeta e no universo inteiro criou a melga, falhou.
Será muito difícil encontrar palavras capazes de transmitir com rigor a sequência de acontecimentos que após o ataque ganharam direito a figurar nesta crónica. Foi a mão atirada ao acaso da escuridão contra um alvo cravado na própria carne e logo em fuga, ou seja a injúria de alguém se esbofetear a si mesmo. Foi a pronta repetição do massacre com um zumbido ainda incógnito no ar e o desespero da sensação de impotência a persegui-lo. Foi o reacender da luz e a aflição de catar o tecto e as paredes e o soalho e quantos esconsos se arquitectem aptos à vilanagem de acobertar um criminoso. Foi o empunhar convicto de uma almofada como instrumento de execução da sentença decretada à revelia sem discussão. Foi o primeiro arremesso a errar o objectivo, mas a acertar em cheio num candelabro familiar já centenário. Foi o segundo e o terceiro e tantos mais, todos eles a falhar a pretensão ou a trocá-la pela inapelável destruição de estatuetas decorativas, jarras de flores, porcelanas chinesas ou imitações, fotografias emolduradas, telas caras a fingir, relógios de sala ou de parede, estantes de livros a não ler além da lombada com estardalhaço no chão. Foi a vizinhança toda a sobressaltar-se, arrancada da cama pelo banzé àquela hora e a telefonar à polícia. E foi a polícia a aparecer e a deitar a porta abaixo, a profanar-lhe a intimidade e a algemá-lo como ao mais perigoso dos facínoras, a arrastá-lo até ao carro celular e a levá-lo para a esquadra num chinfrim de sirenes e de pneus a repintar de negro a negridão do asfalto. Haverá paleta mais pragmática que a cor da noite temperada em plena noite? Repita-se, para maior realce, a conclusão posta a nu no parágrafo antes deste: se o que dizem ter sido o criador de quanto existe e não existe à superfície do planeta e no universo inteiro criou a melga, falhou. E falhou tão redondamente como a redondeza desta esfera com lume no interior e um nada achatada nos pólos.
E o pior de tudo é que, embora invocasse legítima defesa e acabasse, ainda assim, condenado por perturbação da ordem pública ao longo das sagradas horas de repouso e recuperação do equilíbrio sensorial, imprescindível na devoção ao trabalho para conforto da grei, aquele desgraçado mortal não conseguiu matar a melga. E não é que ela o foi visitar à prisão?