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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

DO AMOR A TRÊS DIMENSÕES À HECATOMBE POR DESCUIDO DOS ACTORES

A chover e com força, vê-se. E ele, desprevenido, sem gabardina nem guarda-chuva. Ela, equilibrista amadora em contorções do belíssimo par de pernas sobre saltos de palmo na calçada do passeio, abre com convicção um chapéu minúsculo, que mal cobre os quase dois contos e quinhentos agora mesmo deixados no cabeleireiro. Mas oferece-lhe cobertura até ao carro, ainda assim, se não estiver longe. E ele, logo a fazer contas pelos dedos mentais, sabia lá quem ela era, e se bem que fosse fácil antever uma molha até à medula nos cerca de cem metros a percorrer, aceita os préstimos. Acabaram por ir jantar à praia mais próxima, como se adivinhava, porque a vizinhança das ondas sempre ajuda no sufoco da mudez, e deitar-se num motel sem nome, de pouca luz, poucas perguntas e nenhum conforto, meio escondido na berma da estrada de regresso, entre o negrume dos pinhais em volta. Se ele tivesse tornado, à mesma hora do dia seguinte, ao mesmo ponto onde o temporal os fez encontrar e conhecer, talvez conseguisse a fortuna de a reencontrar, uma vez que o penteado desfeito pela balbúrdia da noitada teria necessitado de mais dois contos e quinhentos, ou mais, para recuperar o porte, a graça, a incisão atacante. Não teria sido, no entanto, o penteado, apesar de ludibrioso no ímpeto contra a sisudez ruinosa por mercê da indecisão, o maior dos argumentos esgrimidos na consecução da arremetida. Aquele belíssimo mas inseguro par de pernas, em inconvenientes oscilações pelo desequilíbrio com origem nos saltos de palmo sobre as felonias da calçada, esse sim, esse é que se instituiria como culpado de tudo o que depois aconteceu. E aquilo que aconteceu nem foi mais que o comezinho entre dois seres vivos e devotados à supressão radical das próprias carências, ainda que para isso até precisem de se esgadanhar, arrebatar, fingir ou inventar uma paixão resumida à desmemória antes e após, num qualquer motel de nenhum conforto, poucas perguntas e pouca luz, meio escondido nos pinhais em volta da estrada de regresso a casa.
Em casa de cada um deles, haverá quem os espere, impaciente, longe de pressupor sequer, por felicidade, a profundidade do mergulho por ambos perpetrado, entretanto. Na dele, até poderá estar um tão belo par de pernas como o que ele, autorizado, acabou de devassar, gozar, possuir. Na dela, talvez esteja um marido amante e amigo, confiante em quem a seu lado se deita, dorme e ressona desde há anos, sem que a tentação do fruto proibido algum dia o fizesse vacilar, desorientar e seguir no rasto de qualquer alternativa de vulto, estivesse a chover ou a derreter penedos e ânimo às ordens da estrela mais próxima. E em ambas as casas, como é comum acontecer, haverá crianças parecidas com quem as projectou, produziu, alimentou, vestiu, calçou, carregou de mimo e de vícios que agora se encarrega de desbastar.
Os chupões e mordidelas do frenesim no pescoço e nos ombros, dela nele e dele nela, é que arruinaram tudo. Nem o recurso a camisolões de gola alta ou cachecóis complicou a descoberta e as consequências previsíveis a qualquer distância de tiro.
Foram a enterrar no mesmo dia e no mesmo cemitério. Só a hora não coincidiu. Quando ela lá chegou, já ele lá estava instalado. E há quem pense que eles se encontram, hoje ainda, nas profundezas onde só os vermes preponderam, e dormem juntos. Terá sido por isso, aliás, que os cachecóis e os camisolões de gola alta foram com eles para a cova, não houvesse mais ferradelas e chupões a ocultar.