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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

MONÓLOGO A DUAS VOZES SOB SUSPEITA DE PRELIMINAR COMBINAÇÃO

Desdobrou o jornal e abriu-o a toda a extensão em quaisquer páginas, como se de repente lhe tivesse dado uma enorme sede de leitura, mas apenas e só a pretexto de atrás de tal leitura se esconder, atendendo a quem acabara de entrar no café. Gesto tardio, afinal, já que a muralha de papel logo soçobrou ao primeiro impacto do aríete das palavras de ouvir, que remédio, e não de ler.
“Vê lá se não entornas as notícias”— chalaceia, cáustico, quem chegou à mesa, entretanto, e se sentou sem pedir licença —. “Tens o jornal de pernas para o ar”.
Histórias há que se finam mal principiam. Esta, assim parece, tirando as medidas com rigor ao fato sepulcral vestido pelo leitor do jornal às avessas, apanhado em flagrante atitude de renúncia a qualquer modo de confraternização no momento. A não ser que o contra-ataque a tal obrigue, e aí, segundo as regras, não há regras nenhumas a invocar no contorno das conveniências.
“Ler ao contrário não é para toda a gente. Mas o que eu pretendia era mesmo que não me visses, nem mais”.
“E eu confesso que só entrei”— insiste a voz da corrosão primeira, na avidez de recuperar o comando das operações —, “porque pensei que a esta hora por cá não estarias”.
Onze e trinta da manhã. Um qualquer café na baixa de qualquer urbe a poente de nenhum país e de todos, com a algaraviada que incomum seria se não fosse a tal hora. Porque é sábado, acrescente-se. Também é conveniente notar que esta desmesura de luz, apesar de coada pelas nuvens altas e tonificada pelo espelho das montras e da humidade na calçada, só costuma verificar-se neste dia da semana e nas supraditas circunstâncias. O riso é fácil e ágil a resposta. Os lugares-comuns têm como nunca o seu espaço estabelecido na linguagem. Para quê teimar na descida ao éter inverso da presciência de que um fim-de-semana é quase instantâneo a sumir-se? Há que aproveitar dele as horas todas, toda a luz nele natural, embora coada por nuvens altas e só tonificada pelo reflexo nas montras e nas pedras escorregadias da calçada.
“Ia-me espalhando na rua”— reincide a voz intrusa no cosmos físico e temporal da outra voz, a que se finca em enjeitar a convivência, como se algo de cada vez menos secreto a tornasse inviável a um sábado, de manhã, e porque não aos demais seis dias muito bem contados, seja a que horas for, noite que seja.
“E teria sido uma pena”— confrange-se a voz avassalada, com o maior dos sorrisos de nem pressuposta contenção, se já antes comprovada a nula importância dada por quem ouve a quem porfia no vilipêndio da luminosidade consagrada por um sábado matinal, num qualquer café da baixa de qualquer urbe a poente de nenhum país e de todos.
Entre ambas as vozes, como se nenhuma delas tivesse rosto e olhos e boca, obreiros de quanto até agora se pronunciou e escutou, continua ao alto um jornal a ser parede, frágil que seja mas bastante para que a conversa morra, sem apelo e sem pena, de inanidade.
E sempre de pés para cima, como se desafiasse a gravidade, o jornal.