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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

ONDE SE PROVA QUE A DISTÂNCIA DA TERRA AO CÉU É MAIOR NO RIGOR DO INVERNO

Avassalador, o nevão teria caído ao longo da madrugada, para grande espanto de toda a gente. Sobretudo de quem tem por gozo visceral ou particular maneira de estar na vida a obsessão de se deitar tarde, sem pressa de mais nem promessas a cobrar. E como primeira reacção em função do assombro, a exultação de todos pela raridade do fenómeno numa zona de tão baixa altitude. As contas far-se-iam depois.
Das crianças, na idade do sacrifício de ir à escola, duplicou o regozijo, quando entre elas estralejou a notícia de que o professor ficara retido na estrada da serra, a quilómetros de distância. Com alguma sorte, até podia ser que uma avalancha os arrastasse, carro e dono, pela encosta abaixo, e a escola, por umas semanas, no mínimo, estivesse encerrada para efeitos de limpeza e reaprovisionamento. Entretanto, a exaltar o ausente, fizeram-lhe à entrada um boneco de neve de tais dimensões, que a porta da escola, desnecessária, deixou de se abrir.
Do carteiro, no dia a dia condenado a percorrer uma por uma as ruas todas de toda a aldeia, a pé, apoiado ou equilibrado contra a bicicleta, só lamentaram a falta aqueles cuja subvenção de reforma lhes acudia assim, pedalada e com que penitência mês a mês. Agora os outros, os das contas da electricidade e da água e não apenas, esses glorificaram o nevão e quantas invernias lhes aliviassem o lombo da canga mensal de tão despóticas despesas, com aguilhão e tudo.
Dos velhos, de luto pela viuvez e que teimam em morar a sós consigo, lá se foram três, duas e um, porque o frio lhes tolheu a voz e ninguém longe ou perto os ouviu gritar por socorro. E do armazém de artroses e reumático entre tremura e névoa nos olhos, onde acaba por ser sina sua esperar em grupo pelo barqueiro, também um embarcou ao ver a alvura da neve pela janela e desta se lançar de cabeça, imaginando-se a flutuar entre as nuvens. E o mais triste, porque ninguém chegaria a tempo de o esclarecer, foi ele ter morrido a acreditar que o céu era ali mesmo, ao alcance de um salto.
Dos bombeiros, também eles a necessitar de auxílio num quartel com os portões aferrolhados pela neve, ninguém teve pena. Nem ninguém teve competência para os arrancar de lá de dentro e botar à estrada, a acudir a quem, como eles, deles carecesse. De nada valeriam as fardas novas, escassos dias estreadas em cerimónia protocolar de enorme estrondo num meio onde cerimónias dessas não haverá todos os dias, com a charanga da casa, arrebatada até aos bemóis, a ser capaz de pôr ao léu lenços e olhos e narizes, tudo a fungar ranho e lágrimas.
Telhados a ruir com fragor, porque as ripas de sustentar as telhas não sustentaram o complemento de cobertura doado pelos céus, vieram a ser quase tantos como os que, com estoicismo, conseguiram a façanha de aceitar a dádiva e aguentar a verticalidade. Por fortuna, soterrados pelos escombros, houve somente três casos a desenterrar e a enterrar de novo, como se impõe, no cemitério: os ditos três velhos silenciados por ordem do frio. De acordo com o relatório da autópsia, já estariam mortos quando os respectivos telhados corroboraram a ordem do gelo oral e até tiveram o zelo, inútil, de se adiantar ao coveiro. E capoeiras depenadas antes da alvorada canora, estrebarias e currais sem sequer moscas, coelheiras sem cheiro de caganitas recentes, ou até gaiolas de pássaros com as portinholas escancaradas e os moradores por ora em parte incerta, tudo o que vida acolhesse e da vida fosse garante com a sobrevivência em perigo, tudo se viu posto a ferros e guardado à vista, não se lembrassem as trombetas apocalípticas de começar a tocar e a desenfrear a debandada geral e os assaltos em conformidade.
E dessa maldição porta a porta dos mercadores de peixe e congelados e demais quinquilharias comestíveis, pisando as buzinas em contínuo como anúncio contra a surdez militante, nenhum deles logrou sequer aproximar-se e ser castigo de orelhas quaisquer. Ninguém no lugar se lembra de tantas horas de paz, sem buzinas a azoinar nem vendilhões a requerer, e a merecer, a expulsão sob o azorrague divino.
E nem Deus se aproximou dos seus fiéis servidores, afinal, num lugar de tradicional investimento nas benemerências do além. Tão sério foi o nevão, que durante três semanas inteirinhas não houve missas nem padre. E nunca tão pouco se pecou por lá — comentou para si mesmo o sacerdote, varrido o interregno para férias invernosas estabelecidas pelo patronato celestial, ante o silêncio no confessionário.