ONDE SE PROVA QUE A DISTÂNCIA DA TERRA AO CÉU É MAIOR NO RIGOR DO INVERNO
Avassalador, o nevão teria caído ao longo da madrugada, para grande espanto de toda a gente. Sobretudo de quem tem por gozo visceral ou particular maneira de estar na vida a obsessão de se deitar tarde, sem pressa de mais nem promessas a cobrar. E como primeira reacção em função do assombro, a exultação de todos pela raridade do fenómeno numa zona de tão baixa altitude. As contas far-se-iam depois.
Das crianças, na idade do sacrifício de ir à escola, duplicou o regozijo, quando entre elas estralejou a notícia de que o professor ficara retido na estrada da serra, a quilómetros de distância. Com alguma sorte, até podia ser que uma avalancha os arrastasse, carro e dono, pela encosta abaixo, e a escola, por umas semanas, no mínimo, estivesse encerrada para efeitos de limpeza e reaprovisionamento. Entretanto, a exaltar o ausente, fizeram-lhe à entrada um boneco de neve de tais dimensões, que a porta da escola, desnecessária, deixou de se abrir.
Do carteiro, no dia a dia condenado a percorrer uma por uma as ruas todas de toda a aldeia, a pé, apoiado ou equilibrado contra a bicicleta, só lamentaram a falta aqueles cuja subvenção de reforma lhes acudia assim, pedalada e com que penitência mês a mês. Agora os outros, os das contas da electricidade e da água e não apenas, esses glorificaram o nevão e quantas invernias lhes aliviassem o lombo da canga mensal de tão despóticas despesas, com aguilhão e tudo.
Dos velhos, de luto pela viuvez e que teimam em morar a sós consigo, lá se foram três, duas e um, porque o frio lhes tolheu a voz e ninguém longe ou perto os ouviu gritar por socorro. E do armazém de artroses e reumático entre tremura e névoa nos olhos, onde acaba por ser sina sua esperar em grupo pelo barqueiro, também um embarcou ao ver a alvura da neve pela janela e desta se lançar de cabeça, imaginando-se a flutuar entre as nuvens. E o mais triste, porque ninguém chegaria a tempo de o esclarecer, foi ele ter morrido a acreditar que o céu era ali mesmo, ao alcance de um salto.
Dos bombeiros, também eles a necessitar de auxílio num quartel com os portões aferrolhados pela neve, ninguém teve pena. Nem ninguém teve competência para os arrancar de lá de dentro e botar à estrada, a acudir a quem, como eles, deles carecesse. De nada valeriam as fardas novas, há escassos dias estreadas em cerimónia protocolar de enorme estrondo num meio onde cerimónias dessas não haverá todos os dias, com a charanga da casa, arrebatada até aos bemóis, a ser capaz de pôr ao léu lenços e olhos e narizes, tudo a fungar ranho e lágrimas.
Telhados a ruir com fragor, porque as ripas de sustentar as telhas não sustentaram o complemento de cobertura doado pelos céus, vieram a ser quase tantos como os que, com estoicismo, conseguiram a façanha de aceitar a dádiva e aguentar a verticalidade. Por fortuna, soterrados pelos escombros, houve somente três casos a desenterrar e a enterrar de novo, como se impõe, no cemitério: os ditos três velhos silenciados por ordem do frio. De acordo com o relatório da autópsia, já estariam mortos quando os respectivos telhados corroboraram a ordem do gelo oral e até tiveram o zelo, inútil, de se adiantar ao coveiro. E capoeiras depenadas antes da alvorada canora, estrebarias e currais sem sequer moscas, coelheiras sem cheiro de caganitas recentes, ou até gaiolas de pássaros com as portinholas escancaradas e os moradores por ora em parte incerta, tudo o que vida acolhesse e da vida fosse garante com a sobrevivência em perigo, tudo se viu posto a ferros e guardado à vista, não se lembrassem as trombetas apocalípticas de começar a tocar e a desenfrear a debandada geral e os assaltos em conformidade.
E dessa maldição porta a porta dos mercadores de peixe e congelados e demais quinquilharias comestíveis, pisando as buzinas em contínuo como anúncio contra a surdez militante, nenhum deles logrou sequer aproximar-se e ser castigo de orelhas quaisquer. Ninguém no lugar se lembra de tantas horas de paz, sem buzinas a azoinar nem vendilhões a requerer, e a merecer, a expulsão sob o azorrague divino.
E nem Deus se aproximou dos seus fiéis servidores, afinal, num lugar de tradicional investimento nas benemerências do além. Tão sério foi o nevão, que durante três semanas inteirinhas não houve missas nem padre. E nunca tão pouco se pecou por lá — comentou para si mesmo o sacerdote, varrido o interregno para férias invernosas estabelecidas pelo patronato celestial, ante o silêncio no confessionário.
Das crianças, na idade do sacrifício de ir à escola, duplicou o regozijo, quando entre elas estralejou a notícia de que o professor ficara retido na estrada da serra, a quilómetros de distância. Com alguma sorte, até podia ser que uma avalancha os arrastasse, carro e dono, pela encosta abaixo, e a escola, por umas semanas, no mínimo, estivesse encerrada para efeitos de limpeza e reaprovisionamento. Entretanto, a exaltar o ausente, fizeram-lhe à entrada um boneco de neve de tais dimensões, que a porta da escola, desnecessária, deixou de se abrir.
Do carteiro, no dia a dia condenado a percorrer uma por uma as ruas todas de toda a aldeia, a pé, apoiado ou equilibrado contra a bicicleta, só lamentaram a falta aqueles cuja subvenção de reforma lhes acudia assim, pedalada e com que penitência mês a mês. Agora os outros, os das contas da electricidade e da água e não apenas, esses glorificaram o nevão e quantas invernias lhes aliviassem o lombo da canga mensal de tão despóticas despesas, com aguilhão e tudo.
Dos velhos, de luto pela viuvez e que teimam em morar a sós consigo, lá se foram três, duas e um, porque o frio lhes tolheu a voz e ninguém longe ou perto os ouviu gritar por socorro. E do armazém de artroses e reumático entre tremura e névoa nos olhos, onde acaba por ser sina sua esperar em grupo pelo barqueiro, também um embarcou ao ver a alvura da neve pela janela e desta se lançar de cabeça, imaginando-se a flutuar entre as nuvens. E o mais triste, porque ninguém chegaria a tempo de o esclarecer, foi ele ter morrido a acreditar que o céu era ali mesmo, ao alcance de um salto.
Dos bombeiros, também eles a necessitar de auxílio num quartel com os portões aferrolhados pela neve, ninguém teve pena. Nem ninguém teve competência para os arrancar de lá de dentro e botar à estrada, a acudir a quem, como eles, deles carecesse. De nada valeriam as fardas novas, há escassos dias estreadas em cerimónia protocolar de enorme estrondo num meio onde cerimónias dessas não haverá todos os dias, com a charanga da casa, arrebatada até aos bemóis, a ser capaz de pôr ao léu lenços e olhos e narizes, tudo a fungar ranho e lágrimas.
Telhados a ruir com fragor, porque as ripas de sustentar as telhas não sustentaram o complemento de cobertura doado pelos céus, vieram a ser quase tantos como os que, com estoicismo, conseguiram a façanha de aceitar a dádiva e aguentar a verticalidade. Por fortuna, soterrados pelos escombros, houve somente três casos a desenterrar e a enterrar de novo, como se impõe, no cemitério: os ditos três velhos silenciados por ordem do frio. De acordo com o relatório da autópsia, já estariam mortos quando os respectivos telhados corroboraram a ordem do gelo oral e até tiveram o zelo, inútil, de se adiantar ao coveiro. E capoeiras depenadas antes da alvorada canora, estrebarias e currais sem sequer moscas, coelheiras sem cheiro de caganitas recentes, ou até gaiolas de pássaros com as portinholas escancaradas e os moradores por ora em parte incerta, tudo o que vida acolhesse e da vida fosse garante com a sobrevivência em perigo, tudo se viu posto a ferros e guardado à vista, não se lembrassem as trombetas apocalípticas de começar a tocar e a desenfrear a debandada geral e os assaltos em conformidade.
E dessa maldição porta a porta dos mercadores de peixe e congelados e demais quinquilharias comestíveis, pisando as buzinas em contínuo como anúncio contra a surdez militante, nenhum deles logrou sequer aproximar-se e ser castigo de orelhas quaisquer. Ninguém no lugar se lembra de tantas horas de paz, sem buzinas a azoinar nem vendilhões a requerer, e a merecer, a expulsão sob o azorrague divino.
E nem Deus se aproximou dos seus fiéis servidores, afinal, num lugar de tradicional investimento nas benemerências do além. Tão sério foi o nevão, que durante três semanas inteirinhas não houve missas nem padre. E nunca tão pouco se pecou por lá — comentou para si mesmo o sacerdote, varrido o interregno para férias invernosas estabelecidas pelo patronato celestial, ante o silêncio no confessionário.
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