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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

BALADA EM TOADA MORNA PARA CONSUMIR SEM PRESSA NEM MUITA SEDE

Rutilantes como promessas de amor eterno em noite de embriaguez por temor à negativa, aquelas sardinheiras naquela varanda parecem ter luminosidade própria, fósforo, radiação. Sem empenho de maior, a horas tão adiantadas, tão fora de horas, conseguem saltar à estrada dos olhos de quem passe em frente, no outro lado da rua. Mesmo que o suposto viandante apenas vagueie com a moinha dos pensamentos noutra galáxia, elas, as flores, tornar-se-ão asteróides e virão de lá de cima perturbar a órbita imprimida aos passos. Por muito decididos e sólidos que se evidenciem, logo baquearão perante a incandescência que a negridão nocturna, em vez de atenuar, galvaniza.
Se agora, a completar o quadro e a dar substância à história, surgisse sobre a vermelhidão da fileira de vasos, na graça da mão enluvada de uma princesa, um pequeno regador de faiança branca a matar a sede às flores daquele jardim em suspensão, dir-se-ia, porque tanto a luva como o gesto se revelariam com a macieza do veludo negro, tratar-se de um truque de magia. O regador branco, com leveza de pássaro em vias de acasalar e montar casa, pareceria ter asas e esvoaçar sobre as sardinheiras, regando-as a todas, uma por uma, como se ninguém lhe pegasse e ele a sós se erguesse contra a sede vegetal. Por fim, sairia de cena, sem suscitar aplausos ou pateada, e talvez deixasse entrever por momentos, que nem o luar a escapar-se à asfixia das nuvens, a alvura imaculada de um semblante de porcelana. Uma pincelada fugaz. Uma visão em que o imaginário substitui os olhos, com vantagem, e se vale da imponderabilidade como argumento. A ideia que fica contará mais que a realidade, já que a realidade teria sido tão-só um fogacho de luz a esbater-se na treva como um eco nas vertentes. Será que amanhã, à mesma hora, se repetirá o feitiço do regador esvoaçante e da imagem, sem nitidez de contornos mas capciosa, de um rosto de princesa sem príncipe que lhe dê em que pensar?
É bem mais feliz, contudo, o final da história. Naquela mansarda, com um gatarrão sem nome e dois periquitos muito bem engaiolados para sua protecção, apenas vive desde a condenação da reforma uma velha marafona, meio trôpega e desdentada, que ainda guarda e se serve de uma das luvas, só uma, do tempo em que era mesmo princesa e tinha aos pés, derramados, os cavaleiros todos de toda a cidade. O veludo já estará puído e conspurcado pelo uso, mas de noite não se vê.