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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

HAVENDO ISCO E QUERENÇA DE QUE A CANA DE PESCA SE NÃO PARTA POR ENQUANTO

“Só quando os cavalos-marinhos relincharem ou derem coices, o que equivale a dizer nunca”—, diz o velho, sem desviar os olhos da água e da bóia nela espetada, rutilante, a balançar conforme a ondulação do rio, ali convertido em lago mansarrão e farto, que não de peixe. Nada melhor que a pesca como terapêutica contra o processo degenerativo de alguns valores desde sempre tomados por primordiais. Mas o que são e quem os galvaniza e defende, tais valores, quando até a simples atitude de viver, hoje, torna cúmplice da hecatombe galopante quem se confine a isso mesmo, viver, respirar e fruir a existência como se a calcorreasse de olhos vendados e tudo julgasse harmonioso em volta dele, ou como se outras existências nem valessem o desconsolo de as pressupor no activo e ao ataque? Só a pesca tem em si a temperança que propicia aos intranquilos a fleuma e aos fleumáticos a outra face lunar, para que sobre ela pesquem e mintam sem que o desmérito do resultado lhes tinja o rosto de escarlate.
Quem o conhecia, àquele velho, sempre o soubera matreiro nas falas, perspicaz na colheita de dados a utilizar depois como argumentos de acutilância certeira, instruído e mais traquejado em lides elocutórias que os filósofos helénicos, famélicos atrás do pão mínimo à troca por agouros falaciosos entre oliveiras e ruínas. Era ele, em boa verdade, o paladino de quantos torneios de promoção da facúndia decorressem nos auditórios de maior credibilidade, ainda que situados não muito acima do pó da estrada sublinhado por bostas ou caganetas de cabra e rodados de carroça. Que alguém se propusesse persuadi-lo a seguir por qualquer via retórica que não a por ele estatuída, ou se atrevesse ao ultraje de dele se rir ao escutá-lo! Dar-lhe a volta — como é hábito dizer-se ao assumir a derrota —, isso é que não.
“Só quando houver peixes-voadores a entretecer o ninho nos beirais ou no arvoredo, o que significa jamais”—, reforça o pescador, de olho nos estremeções da bóia à tona de água como único motivo aparente, no momento, a suscitar-lhe a atenção, a ocupar-lhe as casernas onde o pensamento dormita e recupera do esforço, a proporcionar-lhe paz como contrapeçonha para as malfeitorias mundanas.
Se a fartura de peixe a pescar correspondesse às expectativas sempre investidas ao aparelhar a ferramenta e a lancheira, perfeita viria a ser a terapia contra a arremetida de quantos façam da casmurrice lema e estandarte. E a mentira nunca necessitaria da amostragem de provas passíveis de compra em qualquer supermercado. Não havendo peixe, porém, também nada obriga a que não se obtenham bons resultados com o tratamento. O simples gesto de lançar a linha à água e de a ver pendente, oscilante, prometedora ou a negacear a oferta, conseguirá ser tanto ou mais tonificante que analisar uma tela cuja significância se nos escape e por isso nos prenda, nos arrebate, nos interiorize, nos inculque o gáudio que experimentaríamos se ela tivesse sido produto de nossa lavra e cultivo e prazenteira colheita.
“Só quando a sardinha cair na rede já frita e pronta a comer, o que se sabe impossível de acontecer em qualquer tempo”—, remói outra vez o avô pescador, a sorrir para ninguém, atendendo a que está sozinho na margem do rio, num ponto onde a pesca, hoje, tarda em aliviar os olhos da sobrecarga de noite em que a manhã, por vezes, se prolonga até à manhã seguinte e às outras todas.
“Enquanto manhãs houver, haverá luz a nascer até que não”—, dizem os olhos velhos a quem os espreita lá de baixo, do trémulo espelho de água onde se contemplam, irresolutos, ou onde outros olhos também velhos aproveitam a conjunção e se lavam devagar, devagarinho, que o tempo urge em mostrar-se a limpo.