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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

HISTORIETA TÃO SIMPLISTA COMO A NOÇÃO DE QUE A TRAIÇÃO É COISA FEIA

Primeiro, não enjeitando a ordem natural, foram namorados, devotos e praticantes de uma paixão esbraseada em mútuas arremetidas, sem fim a ver-se nem a mínima precaução em não serem vistos e julgados à revelia. Depois, casaram, e o febrão depressa esfriou. Mesmo assim, aguentaram o casamento além dos limites do enfado, até que o ódio o clarificou e fez desmembrar sem dor, possibilitando que cada pássaro voasse para o seu galho e se predispusesse à concernente empreitada de entretecimento do novo ninho, e, sem surpresa, já bem secundado, como em tais sucessos se pensa ser lídimo e compreensível. Hoje, sob custódia do distanciamento e não apenas físico, portam-se como dois velhos amigos, telefonam-se, encontram-se uma vez por outra, e uma vez por outra dormem juntos como se o fizessem somente para matar saudades daquilo que nem viveram, porque o não souberam viver, de olhos nos olhos e de mãos dadas. E até conseguem o miraculoso feito, aquando desses cada vez menos raros encontros, de nunca entrar em controvérsia, seja qual for a razão, pertença a quem pertencer: aquilo que um quiser, quer o outro; o que por um for desdenhado, há-de ter do outro o desdém correspondente. Quantos anos não desperdiçaram eles, entretanto, buscando uma fórmula comportamental que sempre tiveram ali tão em frente dos olhos e não viram?
Têm mantido incólumes, cada um a seu modo, as respectivas ligações oficiais. Foi ponto de honra ajustado desde o primeiro reencontro em que o desafio a si mesmos necessitou de comprovante na cama. Aliás, qualquer deles, como antes nem à ameaça chegaram, veio a conseguir descendência a partir do novo conjúgio, ela um filho e ele uma filha, o que lhes tem valido como lembrete contra os abusos da sorte, ou a paz agora alcançada correria sérios riscos de se desfazer com a insistência na combinação pelo telefone de escapadelas ao fisco conjugal, se cada vez menos raras, como já se denunciou; ou cada vez menos espaçadas e logo mais próximas entre si, com o ferrão da apetência a instilar em cada uma o veneno da naturalidade, que o mesmo é dizer da contínua aceleração, como todo o corpo lançado num precipício em queda livre às ordens da força da gravidade. Os maiores perigos, nestas lides, são mesmo o da habituação à não obrigatoriedade da prestação de contas a ninguém, o da pressuposição de impunidade, e, por consequência, a gradual frouxidão na vigilância a impor aos próprios passos.
Nada sendo em boa verdade um ao outro, bastante curioso viria a ser este caso se os filhos, a filha dele e o filho dela, porque já crescidotes e na idade semelhantes, viessem um dia a conhecer-se e a apaixonar-se como aos pais aconteceu, e a casar também e a perseguir deles todo o modelo vivencial de que nunca souberam fosse o que fosse, até que se tornassem velhos amigos, se telefonassem e reencontrassem uma vez por outra, na cama ou num qualquer matagal à beira-mar, imunes ao visco de olhos fardados ou à paisana e a remorsos.
Gostariam os pais de saber que os filhos, ignorantes de toda a história calcorreada desde a fogueira juvenil à amadurada mornidão, em tudo se diriam determinados em deles decalcar a trajectória e os vícios?