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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 6 de julho de 2006

DA GERINGONÇA DE A.GRAHAM BELL & Cª. AO QUERIDO TATARANETO

Pegou no telefone, de modelo um tanto ultrapassado pelo febrão das derradeiras modernices por aí em voo, e algarismo por algarismo, de maneira irritante de tão arrastada, marcou um número. Porém, pelo menos de imediato, ninguém respondeu. De qualquer modo, também de imediato, não desistiu.
Se lá na outra ponta alguém viesse a atender, por certo seria uma voz feminina e meio enrabujada, não agressiva, que logo lhe perguntaria por que carga de água é que ele só se lembrara de lhe telefonar a uma hora daquelas, já tão fora de horas de fazer saltar da cama fosse quem fosse, fosse qual fosse a razão.
Também poderia tratar-se de outra voz, também de mulher, que lhe cuspiria no ouvido quantos palavrões soubesse, considerando a hora da chamada e não somente. Motivos outros, e de peso, soterrados nos areais movediços da memória, dariam justificação à contundência da nomenclatura nesse atendimento tão personalizado.
E ainda se poderia alvitrar uma terceira hipótese de voz, bocejante e feminina, como as anteriores, mas pacífica e paciente, sem a mínima acentuação de tom crítico em relação à hora. Algum susto, isso sim, e o correspondente sobressalto de difícil debelação.
Isto, contudo, lendo a história com lunetas das antigas, daquelas em que os finais felizes as fariam embaciar de comoção. Através de mais modernas lentes, das obscuras para subtracção de olheiras matinais ou de após pitada de pó, já a conversa exigiria outros dentes.
Vamos admitir que em qualquer das três proposições se teria ouvido, no lado de lá, uma voz de homem: que diria a voz do lado de cá à voz ouvida? Esgrimiria entre dois pigarros um “desculpe, parece que me enganei no número”? Ou atiraria com o telefone, de modelo um tanto ultrapassado, contra a parede, e voaria até ao lugar do crime, a título prévio, já que o crime só aconteceria quando lá chegasse?
No primeiro caso, o da amante local, talvez ainda não convencida de que nem passará disso, a questão só se resolveria com um tiro a cada qual. Como é que poderia minimizar a infâmia da traição perpetrada por quem ele vinha vestindo, e despindo, há tantos anos?
No segundo caso, o da própria mulher, já desenganada de o ter como marido e pai dos filhos que não teve nem terá, o problema mereceria requintes de solução por arma branca. Como é que toleraria olhar-se ao espelho, dali para a frente, sem que se ouvisse mugir? Uma facada em cada um, e prossiga o arraial, antes que chova na eira.
No terceiro caso, o da mãe, viúva recente e ainda com corpo e alma a pedir olhos com mãos ou vice-versa, já o assunto não se apresentava tão fácil de arrumar a contento de todas as partes envolvidas. Matar a mãe, só por ela manter um amante? Matar o amante da mãe, porque amores serôdios só na literatura e no cemitério? Não será preferível, em casos tais, o recurso a venenos subtis, a instilar gota a gota, dia a dia, até que os sinos dobrem sobre a viagem final em duplicado?
Como que respondendo a estas questões de latejante inconvicção no relativo à obtenção de resposta, ouve-se o cantarolar ranzinza de um qualquer telemóvel num qualquer recanto da casa, recanto para onde se dirige sem pressa, depois de pousar o auscultador nos respectivos ganchos metálicos e de formato antiquado.
Afinal, com o telefonema para um número ainda mal memorizado, só pretendia localizar o brinquedo cuja pequenez assusta, tão grande é o poder que nele se oferece. Quanto ao mais, não passa de especulação, quiçá por complexo de culpa de modelo já um tanto ultrapassado.