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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

segunda-feira, 3 de julho de 2006

NÃO HÁ BELA SEM SENÃO NEM SENÃO QUE ACENDA A VELA

Aquela senhora, como se vê, tem um tique. E é pena. Quando jovem, deve ter sido lindíssima. Uns olhos enormes, amendoados, salientes. O nariz, arisco, irrequieto, como se cheiros vadios lhe desafiassem as funções. A boca, tão bem desenhada e colorida, que dispensaria sem temor os artifícios da pintura. Cabelos, talvez hoje distantes da cor de origem, mas em seu tempo capazes de suscitar apetites ou inveja em quem os visse passar. E um corpo esbelto, está visto, com tudo o que se pretenda nas suas devidas dimensões. Só o tique estaria a mais.
Numa sucessão quase momentânea, pisca o olho esquerdo, a seguir o direito, e avança o queixo sobre a clavícula desse mesmo lado, como se com um gesto indicasse tal direcção a alguém perdido. Parece que até houve uma história, naquela idade de que sempre ficam histórias a contar e a recontar e com mais e mais acréscimos enfáticos, em que um rapaz lhe pediu uma informação e ela, com o queixo, lha deu. Só que, nesse trágico caso, à direita dela passava o rio, e o rapaz, oriundo ninguém sabe de onde, não sabia nadar.
Também se conta que o seu primeiro namorado a deixou, derrotado pela zombaria dos amigos, afinal uns despeitados. E que no segundo, um daqueles meninos nascidos em dias de sol até de noite, terá sido toda a família a massacrá-lo contra o tique. E que no terceiro, foi ela a cercear-lhe as pretensões, cansada de ver e ouvir risos clandestinos entremeados por mimos sobre as mentirolas usuais. E que o quarto, um rapagão acanhado, nervoso, complexado, tinha um tique igual ao dela, mas virado no sentido oposto, o que complicava a simplicidade dos beijos com um caricato desencontro das bocas. E que o quinto e o sexto e quantos mais foram, e foram muitos, todos se foram untando de rubor, ao passear em lugares públicos, e desistindo daqueles olhos amendoados, salientes, enormes, daquele narizito arisco e inquiridor de cheiros vadios em volta, daquela boca túmida e rubra ao natural, daqueles cabelos sedosos onde apeteceria mergulhar, daquele corpo cujas formas tanto de tudo prometeriam. E daquele tique.
Ficou solteira. E dos namoricos todos, só sobrou um filho. Do que era acanhado e tinha um tique igual ao dela, mas para a esquerda. Teve a sorte, este catraio, de herdar dos dois os dois tiques, que assim mal se percebem, aparentando apenas que ele olha para um e outro lado ao atravessar uma rua, por exemplo. Ou ao ver uma partida de ténis, de pingue-pongue e até de arreganhados matraquilhos. Ou ao nadar na piscina, bastando-lhe sincronizar as braçadas com o ritmo dos tiques herdados, para a esquerda e para a direita e para a esquerda e por aí afora, sem esquecer a respiração.
Desejemos, entretanto, que quando o rapazola amadurecer e chegar à doideira dos namoricos à hora, não se prenda por alguma que tenha tiques semelhantes. Como aconteceu com os pais, ele acanhado e ela enervada com a demora, sujeita-se a nunca ser capaz de dar um beijo a sério à namorada e futura esposa, o que pode gerar desconfiança no respeitante à exacta razão de ser daqueles tiques todos.