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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

domingo, 9 de julho de 2006

DAS AGRURAS DO OFÍCIO DE POETA ÀS DE ÁS EM VELOCIDADE

O poeta chegou à aldeia ao anoitecer. Ainda teve tempo, na taberna, de arranjar quem lhe dispensasse um palheiro onde dormir. “Só esta noite”―, diz-lhe o dono, um misto de cepo e de gente, a remorder um palito. “É para enganar a boca por causa dos cigarros”―, confessa ele a quem nada lhe perguntara, depois de se ter informado sobre quem será e o que fará na vida aquele forasteiro, magricelas e macilento, de cangalhas de arame mal encavalitadas sobre uns olhos encovados até ao avesso das pálpebras.
“O que é isso de ser poeta?”―permite-se perguntar agora, senhor da situação a partir da oferenda do palheiro, ao viandante, assumindo-se como porta-voz de quantos por ali estão, e serão só todos os que no povoado, não contando as mulheres e os cachopos, habitarão. Aí uns onze ou doze, não mais.
O poeta, observando num relance a ambiência, viu-se entre gente de terra e estrume, talvez sã mas rude, onde o amanho de mínimas leiras sem ar e o pastoreio quase sem gado hão-de ser sustento e objectivo único em vida. O mais plausível será a aproximação, pensou.
“É ser-se pastor de si mesmo”―, responde o sitiado aos sitiantes, com os olhos fixos nos olhos de quem, sem nunca apagar o sorriso de cepo e de gente à mistura, lhe inquirira o mester. “É andar sobre montes e vales”―prossegue o réu, beberricando um gole―, “em busca de erva a fingir, para matar uma fome que na verdade não se sente”.
Da parte da bancada de jurados, nem um pio. Haverá que ouvir toda a alegação, para depois retirar ilações e decretar o veredicto: culpado sem culpa de ter nascido ou inocente por motivo igual.
“É zurzir o próprio lombo à cajadada”―, continua o arguido, olhando os outros olhos sentados em redor ―, “se se cede à tentação de comer todos os dias, à mesma hora, no mesmo pasto, fingindo ou não”.
No improviso de sala de audiências, a taberna, por indisponibilidade das impossíveis numa légua em torno, só as moscas noctívagas dão a milionésima volta à lâmpada e dão a escutar os zumbidos, enquanto o orador abre pausas para aguçar as unhas ao verbo.
“É balir a quem nos ouça, se se sentir fome a sério. Daquela que nos rói o forro ao ventre e mostra a nossa nudez de mortais, igualzinha à de toda a gente”―, proclama então, sorvendo de uma só vez o que lhe resta de vinho no copo, este auto-instituído juiz em causa própria que como réu já condenado aqui chegou.
“E onde é que está o cajado?”― pergunta o inquiridor oficial, sempre com aquele sorriso de gente e de cepo numa só medida, alardeando a confiança dos vencedores indiscutíveis, donos do campo de luta.
“Está aqui!”―diz o poeta, de pronto, pousando a mão na braguilha das calças, como se agarrasse aquilo que lá por dentro se oculta, murcho ou a denunciar-se à grei pelo volume do inchaço.
Dizem os habitantes das várias povoações a seguir, situadas ao longo da estrada de retorno ao mundo, que nunca viram ninguém passar a correr tão depressa como aquele magricelas, macilento, de cangalhas quebradas sobre uns olhos esbugalhados até ao avesso das pálpebras, a camisa feita em farrapos e as calças sem uma das pernas.