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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quarta-feira, 14 de junho de 2006

PAISAGEM COM PÓ DE PIMENTA NA BOCA PARA TEMPERO PONTUAL

Pegue-se numa árvore, pode ser um choupo, e plante-se aqui. Aqui, em linha com essa e choupo também, pode ficar outra. E aqui outra, outro choupo. E outra além e a seguir, sempre iguais. Um renque de choupos paralelo ao rio, com ninhos de cegonha como havia dantes, lá bem atirados para as alturas. Também paralelo ao rio e às árvores, ou emoldurado por estas e por indecorosos silveirões, um carreirito térreo, sem ambições de ir muito longe e de regressar com quaisquer notícias de alguém. E sombras no ar.
Com tudo isto sobre a esquerda, ficar-se-á apontado a poente. Só que entretanto é de noite. O sol já há muito abalou. E a única claridade é a das estrelas, num céu que aparenta ser pintado à mão, tão perfeito o esmalte, de uma ponta à outra. Sem a menor mancha provocada pelo pânico de que a tinta seque depressa de mais. E sombras a esmo.
Para a outra banda, ou embicando ao norte, disponham-se campos de milho sem limite à vista, onde aqui e além se percebam árvores. Mais choupos, e mais cegonhas e ninhos, ou talvez salgueiros. Espécimes dependentes da abundância de água nas cercanias, para que o nível freático os não deixe ficar mal. É que a bênção das cheias já secou há décadas, sem alternativa de reposição. E sombras em força.
Tendo o rio e as silvas e o carreirito e os primeiros choupos plantados à direita, ou de nariz orientado agora para nascente, poderá supôr-se uma estrada de alcatrão roubado que venha a terminar aqui. Também ela, a estrada, até este ponto, correu em paralelo à margem do rio, ao renque dos choupos por aí espetados para que mereçam ninhos lá em cima, à muralha das silvas e ao carreirito sem notícias de ninguém. E sombras a rodos.
Já com a madrugada bem alta, vindo de nascente, ou seja pela estrada de alcatrão ratado logo na feitura, e virando-se para sul, ao deter-se entre o paredão de silvas e o renque de choupos, sobre o carreirito de terra batida que daqui jamais sairá em demanda de notícias, um carro com gente lá dentro. E estas sombras em torno, de tão espessas, mal deixam espreitar e dar conta de quem lá estará. Duas pessoas apenas? O que as traz aqui a uma hora destas? Não virão ao assalto dos ninhos de cegonha, para lhes roubar os ovos e fazer batidos?
Só pode ser isso, pelo que o carro estremece sem ter o motor ligado.