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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

quinta-feira, 13 de julho de 2006

ONDE SE PROVA QUE NO MELHOR PANO CAI A NÓDOA OU AO INVÉS

O senhor da loja de fazendas, depois de correr todos os ferrolhos por dentro e de fechar as três fechaduras da porta, duas em cima e uma em baixo, junto ao chão, foi para casa. Não morava longe, mas já lhe começava a pesar aquela distância quatro vezes por dia.
Já a meio da viagem, que seria a última de hoje, acudiu-lhe a dúvida acerca de ter apagado ou não a lâmpada do armazém, nome pomposo dessa escassa divisão ao fundo da loja, onde guardava o material antes de estar seleccionado, etiquetado, pronto a vender. E porque a vespa da incógnita zumbe mais que as verdadeiras, encolheu os ombros e lá deu a volta aos passos, tornando a soletrar sem gosto aquele fado das pedras da calçada de que já julgava estar livre.
Após reabrir uma a uma as três fechaduras, entrou na loja e seguiu o balcão até lá ao fundo, quase às escuras, deixando apenas encostada a porta da rua. Não voltou a sair pelo seu pé.
Segundo aqueles detectives sem crachá nem lupa, que logo se fazem ouvir a si próprios massacrando outrem, o assassino terá entrado na loja pela porta principal, que o velho deixara mal encostada para ter alguma luz. Não há provas disso, entretanto. Nem testemunhas que lá tenham visto entrar alguém como se fosse a sombra dele.
Outros, tão especuladores como os especialistas que nada sabendo de nada tudo garantem, teorizam que o criminoso lá se escondera antes do homem fechar a loja, e que foi apanhado em flagrante quando ele, sem desconfiar de nada, abriu a porta e entrou.
Como não desapareceu coisa alguma, além da vida do velho, deu-se o caso por encerrado, logo no dia seguinte, quando a autópsia revelou a insuficiência cardíaca de que ele nunca se queixara. Quanto à marca de dentes nos lóbulos das orelhas, no pescoço, no peito, e aos chupões repenicados nos braços, nos ombros, no ventre, ou um pouco por toda a parte, se até nas costas havia sinais de dedos e unhas cravados com frenesi, tudo se viu interpretado como evidentes indícios de alergia à naftalina, tão usada na loja contra a traça. E sobre as peças de fazenda estendidas no chão como enxerga de improviso, por trás, na divisão denominada armazém por simpatia, foi a própria viúva que tratou de as explicar como o local onde ele muito gostava de dormir a sua sesta. Quem lhe tirasse a sesta―sobrecarregava ela, chorosa―, tirar-lhe-ia o melhor pedaço do dia.
À boca calada, porém, toda a gente se perguntava quem teria sido ela, a naftalina encaprichada em pôr-lhe asas e pô-lo a voar até aos mares da superfície lunar, sabe-se lá, onde ele já adivinharia que mais tarde ou mais cedo acabaria por morrer afogado, com certeza, mas contente, muito contente. E de sobremaneira estranhava-se a expressão fria e o ar de completa indiferença da viúva, se bem que carregada de luto, se se lhe punham hipóteses de ter sido esta ou aquela.
Tudo se esclareceu quando alguém conseguiu descobrir, um dia, sem se saber por que processos, que não foi uma: foi um.