CRÓNICA DE VIAGEM COM O REGRESSO ANTES DA IDA
Uma vez que se lhe desvaneceu o intuito de a reconquistar, o melhor a fazer é empenhar-se noutro objectivo de não menor envergadura. Esquecer assim, de repente, algo a que muito se nos amarrava o pensamento e modelava a conduta, nunca foi trabalho de somenos. E daí, o mais célere e aprazível sistema a exigir-nos um esforço equivalente, sem peias, sempre há-de ser aquele em que ousemos soterrar o passado por carradas e carradas de presente, dando rédea solta, como é de uso dizer, aos desmandos da sofreguidão.
O primeiro avanço a ensaiar, o segundo, talvez até o terceiro, trarão à tona toda a inibição resultante de qualquer projecto gorado. De maneira gradual, no entanto, todo o rubor se virá a desvanecer e confundirá nas restantes cores determinadas pelo prisma, para dar corpo e voz a um deslumbramento em que o simples toque de novidade seja argumento de imediata afirmação. E tudo o mais são cantigas–como diz o outro–, no que respeitará ao respeito que nos possa merecer a memória dessa já longínqua conquista, hoje em absoluto abandonada aos grilos, na mente, e até sempre, em concreto, devolvida a si mesma para sua própria requalificação entre parâmetros de muito particular escala métrica.
E quantas vezes não acontece, tempos depois da desistência, verificar-se uma radical inversão dos desempenhos em cena, passando então o perseguido a perseguidor, o desesperado a indiferente, o ouvinte a declamador, o desistente a alvo de tiro ao arco ou à pedrada?
Era nestes meandros que se embrenhava, quando, já de mala feita e guardada na bagageira do carro, fechou com estrondo propositado o portão da garagem, pronto para zarpar, de vez, daquelas águas de tão dúbia profundidade.
Era nestes meandros que se embrenhava, quando, já de mala feita e guardada na bagageira do carro, fechou com estrondo propositado o portão da garagem, pronto para zarpar, de vez, daquelas águas de tão dúbia profundidade.
“Logo temos cá visitas, não te esqueças do pão”–, grita-lhe da varanda uma voz de camisa de noite, cuja leveza e cuja quase transparência dão as mãos com similar perigosidade, se bem que de rosto deslavado pela verdade matinal, mas não menos apetecível por isso, e de cabelo eriçado entre ganchos e rolos e envolto pela rede de pescar ao cerco, à vista da costa.
O relógio, por maroteira, segreda-lhe que ainda é cedo. E ele fecha o carro e reentra em casa, com uma repentina vontade de assobiar uma melodia de maviosa entoação, num qualquer tempo, num qualquer lugar.
Quanto à mala, já guardada na bagageira, mais tarde se verá se vai viajar ou regressar ao armário.
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