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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

terça-feira, 17 de outubro de 2006

DE BOCA EM BOCA O SILÊNCIO SEM VOZ NEM MUDEZ À VISTA

Tinha jurado que o mataria, e matou. Comprou a pistola com essa única finalidade, foi procurá-lo onde muito bem sabia, e só com dois tiros, um na pança e outro no meio da testa, fê-lo desmoronar-se desde o nível onde se lhe via uma apalhaçada tentativa de sorriso, até ao esgar final do nariz esborrachado contra o cimento do chão.
Nem um sopro de incómodo o perturbaria por ter de passar o restante dos seus anos numa cela. Nem seria já, com certeza, muito tempo. Ao chegar a polícia, com o habitual espalhafato municiado pela sobrecarga de filmes policiais na televisão, de pronto entregou a arma ao primeiro agente a acorrer ao local e estendeu os pulsos ao certeiro enlace das algemas, sorrindo em vez de responder a quanto lhe perguntaram. Nem mesmo o descuido de um sussurro lograriam arrancar-lhe.
Remetido ao calabouço da esquadra, a fim de ser ouvido pelo juiz, na manhã seguinte, em audiência preliminar, continuou a não ceder uma palavra a ninguém. Nem às promessas, nem aos avisos, nem às ameaças. Nada teria o efeito de abre-latas capaz de lhe sacar um murmúrio.
Confirmada a prisão a título preventivo enquanto decorresse a investigação e o processo conseguisse substrato e asas para voar, lá foi resistindo aos ataques de tudo e de todos, a toda e qualquer hora, desde os companheiros de cárcere à brutidão dos guardas, do advogado designado ao capelão, dos amigos mais próximos a tantos outros assim afirmados e por ele não conhecidos de parte alguma. Desde toda a gente à gente toda que a tudo apelava para o libertar de tamanha obcecação por um silêncio tão prejudicial e comprometedor, passível de lhe agravar a sentença final em alguns anos. Ou de lhe impedir o usufruto de algumas benfeitorias, licenças precárias e outras, que um comportamento mais assisado, porque modelar ante os demais, sempre antevê.
Nem mesmo as lacrimejantes visitas da mulher e dos filhos o convenceriam a regressar ao batalhão dos apologistas da voz como meio de comunicação por excelência, desde o princípio dos princípios, limitando-se a abraçá-los com paixão, sem se desfazer do sorriso, e a piscar o olho ao mais novo.
E foram meses, muitos meses, a ser alvo da atenção de todo o universo ululante, tanto dentro como fora da prisão, como se um gigantesco projector lhe seguisse os passos e o expusesse, a nu, ao olhar encaprichado de quantos, que o mesmo é dizer de todos, se pelariam por vê-lo capitular e desatar aos berros, a correr e a saltar, a dar com a cabeça nas grades.
Viu-se observado por psiquiatras, psicólogos e mais técnicos especializados nos dons da simulação, sem que vez nenhuma o pesquisador sorrisse, no fim, por ter ultrapassado e tornado inútil o sorriso dele.
No dia do julgamento, enfim chegado, sem grande espanto se confirmou que uma multidão em alvoroço se aglomerava nos claustros do templo justiceiro, esperando entrar. Porém, não entrou ninguém, nem um curioso passou, por ordem de quem mais ordena a quem apenas obedece, exceptuando quem por lá defendesse um papel interventor, desde o martelo do juiz à sonolência do escrivão e à presença sem eco do delegado, aos ardis contorcionistas dos advogados, ao perjúrio por contrato dos deponentes, à vermelhidão dos polícias, ao arguido.
Este, nesse entretexto, continuava tão sorridente e tão calado como já lhe seria exigível, afinal, se se fizesse um inquérito de rua, de porta em porta. E nos claustros e nos corredores e em plena via pública, entre falácias e apupos contra togas e becas, a turba bramia, a turba crescia, ameaçando calar os palrantes e dar a palavra aos que a não tivessem.
Só lá estava um que a não tinha, mas por opção sua, desde há largos meses. E não abriu a boca.