DE OLHOS NOS OLHOS NENHUM OLHAR MENTE NEM SABERÁ ESTAR CALADO
Manhã ainda enevoada e remelosa numa rua da cidade sob a azáfama do costume, onde o comércio tradicional já foi chão produtor de uvas e vinho para quem beber nunca soube. Em demasia se terá beberricado, sem se atentar na conveniência da construção de suportes firmes e que de pé mantivessem a arquitectura funcional perspectivada. E nesta rua, como nas demais, onde o consumo e os consumidores se amparam em recíproco, um banco será uma ave de rapina a pairar sobre a cabeça de quem passe, quem vá, quem fique. Não são muitos os clientes, ao balcão do banco. Ainda não há filas de espera a roer unhas e a mastigar créditos de pagar ao longe.
Ao fundo, todo encostado ao vidro da única caixa em funções, como se com grandes pecados se dirigisse ao padre na gaiola do confessionário, um senhor de barbas e voz empastada, de propósito, fala lá para dentro.
“Eu não quero exceder-me, compreenda. Mas se me fizesse a fineza de introduzir neste saco todo o dinheiro que aí tem em caixa, poupar-me-ia ao sempre confrangedor aborrecimento de lhe pregar um tiro no meio dos olhos, está a ver? E espero que perceba o motivo pelo qual não terá de mim o respectivo recibo, pois só o meu guarda-livros saberia como ultrapassar esse escasso quiproquó contabilístico. Tenha um resto de dia retumbante, e queira ter a gentileza de manifestar ao senhor gerente o meu profundo pesar pelo falecimento de sua sogra, ontem à noite, ao que julgo saber. Deixe-se estar, não precisa de me acompanhar à saída”–, disse.
Muito além do espanto colectivo a partir do impacto sempre provocado por qualquer assalto, ninguém já sabia, em todo o banco, que a sogra do gerente teria morrido. E só nessa altura os demais funcionários deram pela falta dele, do chefe maior naquela dependência, um dos primeiros a chegar e sempre o último a sair, para exemplo.
Ao fundo, todo encostado ao vidro da única caixa em funções, como se com grandes pecados se dirigisse ao padre na gaiola do confessionário, um senhor de barbas e voz empastada, de propósito, fala lá para dentro.
“Eu não quero exceder-me, compreenda. Mas se me fizesse a fineza de introduzir neste saco todo o dinheiro que aí tem em caixa, poupar-me-ia ao sempre confrangedor aborrecimento de lhe pregar um tiro no meio dos olhos, está a ver? E espero que perceba o motivo pelo qual não terá de mim o respectivo recibo, pois só o meu guarda-livros saberia como ultrapassar esse escasso quiproquó contabilístico. Tenha um resto de dia retumbante, e queira ter a gentileza de manifestar ao senhor gerente o meu profundo pesar pelo falecimento de sua sogra, ontem à noite, ao que julgo saber. Deixe-se estar, não precisa de me acompanhar à saída”–, disse.
Muito além do espanto colectivo a partir do impacto sempre provocado por qualquer assalto, ninguém já sabia, em todo o banco, que a sogra do gerente teria morrido. E só nessa altura os demais funcionários deram pela falta dele, do chefe maior naquela dependência, um dos primeiros a chegar e sempre o último a sair, para exemplo.
Quando as sirenes policiais irromperam a atordoar todos os ouvidos cravados em torno do estabelecimento bancário, já o gatuno lá ia, a pé, sem correr, escondido no âmago da massa ambulante pelas ruas de qualquer cidade. Levando o saco às costas, do género mochila escolar, e o sorriso aberto e atento a quem, sorrindo, lhe correspondesse, não mais se descobriu onde pararia, nas cercanias ou dali distante. Não seria senão um títere semelhante a tantos, de barbas grisalhas e espessas sobrancelhas, por certo postiças, a ensombrar-lhe os olhos e a escondê-los à vista.
Breves dias depois, afinal o tempo relativo ao nojo oficial por morte de algum ente familiar mais próximo, o gerente voltou ao activo, com todo o pessoal a dirigir-se-lhe no intuito de lhe apresentar, como se impunha, sentidas condolências. E só aí é que o caixa, protagonista, embora passivo, no assalto, pôde olhar de frente aqueles olhos, com uma nitidez de fotografia ao vender produtos. E sem a assombração de quaisquer mais grossas sobrancelhas e sem o griso das barbas como reforço, seria capaz de jurar que eram os mesmos.
Num prazo de poucos dias, foi despedido. O gerente, porém, numa atitude de exemplar magnanimidade, interferiu junto das altas esferas e conseguiu transformar esse despedimento em reforma compulsiva. O caixa era apenas – ninguém devia esquecê-lo – um dos mais antigos servidores do banco.
Uma questão de justiça, portanto. Nada de mais.
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