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CONTADOR DE HISTÓRIAS E HISTORIETAS E PETAS E TRETAS DE ENTRETER INSÓNIAS A GRANEL OU POR ATACADO

sábado, 19 de maio de 2007

PASTORAL DAS CONSUMIÇÕES POR QUE PASSA QUEM PASTOREIA

Apesar do sol ainda estar distante de aflorar as cãs das mais remotas montanhas, a treva enfraquece e vai dando a vez aos pássaros. Rouxinóis ou melros, pintassilgos ou pardais, rolas ou piscos, ferreiros ou andorinhas, quantos mais, melhor, em prol da banda. As últimas estrelas também já dormitam. Vem aí a ronda de limpeza destapar o dia e pô-lo a brilhar.
E se os sons, quaisquer sons, por esta hora, são como astros a tremeluzir num firmamento de silêncio audível, os chocalhos do rebanho, agora mesmo posto em marcha até aos socalcos a estrumar como contrapartida, hão-de ser uma constelação, talvez. Ou até uma nebulosa, conforme a fome e a viabilidade de a matar. O pastor que o diga, sabichão de lei, distraído no ritual de preparar um cigarro, enquanto o cão dá ordens, ao substituí-lo. E o sol sem notícias, ou quase, neste entretanto em que a noite se prolonga dia adentro.
não cai uma gota de chuva haverá meses. E os pastos estão fracos, onde quer que haja balidos a depenicá-los sem grande convicção nem maiores proventos. Até por aqui, nas margens deste riacho, transformado em lixeira nocturna de avejões no engate. Assim sendo, urge a penitência de trepar e calcorrear as vertentes orientadas a norte, onde as sombras sempre são esperança de alguma humidade em conserva e da respectiva verdura a mordiscar, que não naqueles torresmos vulcânicos da panorâmica voltada a sul, poente ou nascente. Aí manda o rei flamejante, como bem se sabe, indiferente a princípios de conduta ou aberrações similares.
Reza uma lenda local que por tais ermos, penedias acima, se perdeu um dia uma jovem e bela pastora, quando procurava salvar da morte um borreguito mal acabado de nascer, cujos vagidos pareciam vir lá do cume. E ela foi subindo, subindo, subindo, imprudente, abandonando o rebanho na encosta, e por lá ficou nas alturas, prisioneira de algum ser demoníaco revestido de com lágrimas de cordeiro crê-se –, ou apenas esquecida, nem mais, da rota de retorno a casa.
Ainda hoje, após tantos séculos de busca e de acréscimos da história, todo e qualquer pastor que nestes cumes se arrisque sonha encontrá-la e deitar-se com ela, possuí-la, arrebatá-la, fazê-la gritar de paixão. E há até quem alvitre que os de mais tenra idade, estando amarrados pelo viço ao vício, dela farão arremedo com uma ovelha ou outra.
No desvão da noite e porque ainda é jovem, se este pastor de hoje a não encontrar, como é de prever, é o que fará. E o cão que se cuide.